Teses sobre Kafka (parte 5)


 

Tese 4

O sentido da muralha nutre-se da esperança de haver um sentido.
 

Tive a sorte de aos vinte anos ser aprovado na prova máxima da escola de nível inferior exatamente quando começou a construção da muralha. Digo sorte porque muitos dos que haviam alcançado antes o grau mais elevado da formação que lhes era acessível, anos a fio não sabiam o que fazer com o seu conhecimento e, a cabeça cheia dos planos de construção mais grandiosos, andavam de lá para cá inutilmente, desmoralizando-se aos montes. Mas aqueles que finalmente chegaram à construção como mestre-de-obras, mesmo nos níveis mais baixos, foram de fato dignos dela. Eram homens que haviam meditado muito sobre a construção e não paravam de pensar nisso, que de certo modo se sentiam amalgamados à construção desde a primeira pedra que faziam mergulhar no solo. Naturalmente porém o que movia construtores como esses, além da avidez de realizar o trabalho mais sólido, era a impaciência por verem afinal a construção emergir em sua plenitude. O trabalhador diarista não conhecia essa impaciência – a única coisa que o impele é o salário -; os mestres-de-obras mais altos, até mesmo os de nível médio, enxergavam o suficiente do múltiplo crescimento da construção para desse modo conservarem o espírito forte. Mas para os de nível inferior, homens espiritualmente muito acima de sua tarefa, na aparência pequena, foi necessário fazê-los assentar pedra sobre pedra, ao longo de meses e até anos, numa região desabitada das montanhas, a centenas de milhas de distância dos seus lares; a falta de perspectiva desse trabalho assíduo, mas que até em uma existência prolongada não levaria ao alvo, os teria desesperado e sobretudo tornado mais sem valor para o trabalho. Por esse motivo escolheu-se o sistema de construção por partes. Quinhentos metros podiam ser aprontados nuns cinco anos, naturalmente depois os mestres estavam em regra esgotados demais e tinham perdido toda a confiança em si mesmos, na construção, no mundo; por isso então, quando ainda estavam no entusiasmo da festa de união dos mil metros da muralha, eles eram despachados para longe, muito longe, vendo na viagem sobressaírem aqui e ali partes prontas da muralha, passando pelos alojamentos dos chefes superiores, que os presenteavam com condecorações, ouvindo os gritos de júbilo dos novos exércitos de trabalho que afluíam em torrentes do fundo das províncias; vendo ser abatidas florestas destinadas aos andaimes da muralha, montanhas transformadas a martelo em blocos de pedra e escutando nos lugares sagrados os cânticos dos devotos que rogavam pelo término da construção. Tudo isso apaziguava sua impaciência. A vida calma da terra natal onde passavam algum tempo fortalecia-os; prestígio de que gozavam todos os construtores, a crédula humildade com que eram ouvidos os seus relatos, a confiança que o cidadão simples e tranquilo depositava na antiga construção da muralha – tudo isso esticava as cordas da alma. Como crianças eternamente esperançosas eles se despediam então da terra natal, o desejo de trabalhar outras vez na obra do povo havia se tornado invencível. Partiam de casa mais cedo do que teria sido necessário, a metade da aldeia os acompanhava durante longos trechos. Em todos os caminhos, grupos, flâmulas, bandeiras – nunca antes ele haviam visto como sua terra era grande e rica e bela e digna de ser amada. Cada conterrâneo era um irmão para o qual se construía uma muralha protetora e que por isso agradecia, com tudo o que tinha e era, pela vida inteira. Unidade! Unidade! Peito a peito, uma ciranda do povo, o sangue mais encerrado na estreita circulação do corpo, mas rolando docemente e não obstante retornando pela China infindável.

Assim portanto fica compreensível o sistema de construção por partes; mas por certo ele ainda tinha outras razões. Não é nada estranho também que eu me detenha tanto tempo nesta questão: por mais inessencial que a princípio pareça, ela é a questão nuclear de toda a construção da muralha. Se quero transmitir e tornar inteligíveis o pensamento e as experiências daquele tempo, então não posso deixar de me aprofundar o suficiente justamente nesta questão.”

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A vida social tem muitos becos. Um deles é o das pequenas excelências. O capitão que se orgulha da nota alta de cálculo que obteve quando cadete; o comerciante, cheio de prosápia, que declina todos os afluentes do Amazonas; o ex-campeão do torneio local que exibe o velho troféu aos que o visitam no domingo; o modesto funcionário que ocupou certa feita um cargo importante e ainda saboreia o sabor póstuma de sua glória interina. O resto em Dom Casmurro, capítulo XVI.

 

Aos olhos dos que estão acostumados a vencer ou a desprezar as vitórias sociais, os portadores de pequenas excelências se perdem na multidão de ratés, mas certamente são tipos interessantes. Apegam-se às pequenas honrarias e congratulações; lustram as medalhas e dispõem o diploma emoldurado à vista de quem entra; mensuram as eras pelo momento glorioso de sua hégira; comovem-se com palavras abstratas escritas em maiúsculas: Missão, Vocação, Trabalho, Dever, Família, Deus e Pátria. Veem-se destinados a tarefas importantes cuja realização lhes escapa totalmente, mas que perseguem com singular obstinação, a despeito dos sinais evidentes de sua própria incapacidade. (1)  

 

O narrador-cronista que, menino, fugia chorando quando o mestre derrubava a muralha de seixos, cresceu e foi aprovado na prova máxima da escola de nível inferior. Homem de pequena excelência, ele é humilde e orgulhoso o mesmo tempo. Humilde pois, destituído de poderes ou méritos especiais, felicita-se pela sorte favorável: recém-egresso da escola, ele foi convocado para o começo da construção da muralha. Orgulhoso porque zelosamente se distingue, de um lados, dos fracassados, isto é, de todos os seus semelhantes que tinham atingido a maturidade antes da construção da muralha e se perderam numa vida sem rumo nem proveito, e, de outro lado, dos trabalhadores braçais, que seriam movidos apenas pelo salário e não pelo alto sentido da missão. (2)

 

Sentir-se eleito é a mais barata das mágicas, escreveu Musil n’O Homem sem Qualidades. As pequenas excelências são vezeiras nessa autoilusão. O narrador-cronista acredita pertencer ao escol dos que tinham meditado profundamente sobre a muralha e, por assim dizer, amalgamavam-se à construção. Mas a lentidão dos trabalhos arrefecia os entusiasmos. Embora ciosos e dedicados, os mestres-de-obras inferiores se impacientavam. A missão interminável se tornava desesperadora e o desespero os fazia duvidar da obra, de si mesmo e do mundo. Era necessário que se fizesse algo para manter o moral dos mestres-de-obras inferiores, “homens espiritualmente muito acima de sua tarefa, na aparência pequena”.

 

O sistema de construção por partes resolvia esse problema.  Cada trecho da muralha ocupava os mestres-de-obras por uns cinco anos, depois do que recebiam os parabéns de seus superiores e passavam férias na aldeia natal. Na viagem para casa, eles podiam ver que a construção progredia e era grandiosa. No sossego da província, eram recebidos com deferência e ouvidos com respeito. Descansados e inflados pelas lufadas de congratulações, as pequenas excelências recobravam o alto sentido daquelas palavras abstratas e maiúsculas, como Dever, Pátria e Povo, e partiam novamente para sua missão, envolvidos pelo colorido das bandeirolas e dos estandartes.

 

“Em todos os caminhos, grupos, flâmulas, bandeiras – nunca antes eles haviam visto como sua terra era grande e rica e bela e digna de ser amada. Cada conterrâneo era um irmão para o qual se construía uma muralha protetora e que por isso agradecia, com tudo o que tinha e era, pela vida inteira. Unidade! Unidade! Peito a peito, uma ciranda do povo, o sangue mais encerrado na estreita circulação do corpo, mas rolando docemente e não obstante retornando pela China infindável”. (3)

 

Enquanto o narrador-cronista festeja seu regresso à construção ao som da fanfarra municipal, cabem-nos algumas perguntas. Seria o singular sistema construtivo por partes, que criava brechas talvez mais extensas do que a própria muralha, uma concessão destinada a fortalecer o ânimo dos mestres-de-obras inferiores diante da tarefa interminável? Eram os mestre-de-obras inferiores tão importantes para merecer essa concessão? E de quem partira essa decisão?

 

Humildes e orgulhosos ao mesmo tempo, as pequenas excelências se julgam meritórios, mas estão cientes de que, seu mérito e seu esforço, por não serem excepcionais, correm o risco de ser ignorados. É por isso que as pequenas excelências acreditam que há uma instância superior soberana que providencialmente zela por eles, o que explicaria o estranho método de construção da muralha.  Essa é a mágica barata dos que se sentem eleitos.

 

Todavia, se é verdade que essa instância superior soberana é benevolente, ela também é dotada de arbítrio e de propósitos insondáveis, uma vez que não podem ser reduzidos ao cálculo razoável de utilidade daqueles que estão nas instâncias inferiores. O narrador-cronista demonstra saber disso ao reconhecer que o método construtivo da muralha tinha outras razões além de ser uma concessão à fraqueza humana dos mestres-de-obras inferiores.

 

“Assim portanto fica compreensível o sistema de construção por partes; mas por certo ele ainda tinha outras razões. Não é nada estranho também que eu me detenha tanto tempo nesta questão: por mais inessencial que a princípio pareça, ela é a questão nuclear de toda a construção da muralha. Se quero transmitir e tornar inteligíveis o pensamento e as experiências daquele tempo, então não posso deixar de me aprofundar o suficiente justamente nesta questão.”

 

O que temos até agora? Uma muralha feita com a alegação de proteger a China foi construída segundo um método que deixava imensas brechas, que contrariavam o objetivo da muralha e demandavam trabalho adicional de fechamento. O narrador formula uma razão de cunho providencialista: tal método, embora contraproducente, permitia que os mestres-de-obras inferiores recobrassem o ânimo para persistir na obra. Contudo, o providencialismo supõe uma instância superior soberana dotada de arbítrio, cujas decisões não são necessariamente inteligíveis aos que estão nas instâncias subordinadas. Compreender os desígnios da providência exige uma investigação e, no limite, a formulação de uma teodiceia.

 

O narrador anuncia, então, que vai avançar na sua indagação a respeito do método de construção por partes. Ele quer apreender a essência e o fundamento da muralha a partir do método construtivo adotado, uma questão aparentemente lateral inessencial. Trata-se de uma promessa filosófica de boa cepa, penhor da lucidez do narrador, que sustenta o interesse do leitor, pois narrador e leitor compartilham a expectativa de que o sistema construtivo da muralha se torne inteligível por razões e motivos verossímeis, que formem uma totalidade coerente e intramundana, mesmo que percebida de maneira parcial e fragmentada pelo narrador. Todavia, como toda linha do horizonte, esse horizonte realista se afasta e recua quando o narrador tenta alcançá-lo.

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Notas

(1) Em Kafka, outro exemplo de pequena excelência é o mestre-escola da aldeia, no conto de mesmo nome, que escreve um malfado relato sobre a aparição de uma toupeira gigante. O narrador-cronista de “Durante a construção da muralha da China” é alguém tão obstinado e incapaz quanto o mestre-escola de aldeia. E assim como o mestre-escola não consegue elucidar nem convencer ninguém com seu relato, tampouco o narrador-cronista atina com a solução do problema que ele quer explicar. A opacidade está, em primeiro lugar, nele mesmo.

 

(2) “O trabalhador diarista não conhecia essa impaciência - a única coisa que o impele é o salário”. O narrador-cronista, como qualquer pequena excelência, revela sua ponta de desprezo para com a gente que trabalha impelida apenas pelas necessidades imediatas, sem compreender o alto sentido do trabalho. Essa oposição entre o materialismo rude e egoísta atribuído aos trabalhadores e o idealismo doce e patriótico dos setores médios é um exemplo de como, na luta de classes, as pequenas excelências correm para cerrar fileiras junto das camadas dirigentes. Mas o exemplo é caricatural na medida em que os trabalhadores nunca foram imunes aos apelos do idealismo doce e patrióticos. Entre os trabalhadores há muitas pequenas excelências.

 

(3) Para Günther Anders, Kafka expressa aí um desejo pessoal de integração na coletividade, com tintas de protofascismo: “Só que não se pode, nesse ponto, esquecer que Kafka, quando tem medo da liberdade, não se alista  - pelo menos não originariamente – em favor de formas de domínio que praticam a supressão da liberdade. Não se pode, por outro lado, negar que sua sede de “filiação” total às vezes desabafou como discurso de defesa da desindividualização e da dependência. “Unidade, unidade!” – lê-se em Durante a Construção da Muralha da China – “peito a peito, uma ciranda do povo, o sangue mais encerrado na estreita circulação do corpo, mas rolando docemente e não obstante retornando pela China infindável”. Ou: “Outrora era lema secreto de muitos e até dos melhores: procure entender com todas as suas forças as disposições da liderança, mas até um certo limite, depois deixe de pensar. Um lema muito sensato.” Quem hoje lê desprevenidamente essas frases tem que considera-las, em virtudes dos vocábulos organológicos, um documento literário pré-fascista – um discurso de defesa da obediência cadavérica e do sacrificium intellectus. Na realidade, frases como essas são perigosas, quando não interpretadas” (Günther Anders, Kafka: pró e contra, Perspectiva, São Paulo, 1969).

Penso diferente. Toda a conversa sobre Pátria, Unidade, Povo e Sangue faz parte daquelas palavras abstratas e maiúsculas que as pequenas excelências veem como motores de sua ação e o sentido de seus atos. É no âmbito da análise do tipo humano das pequenas excelências que o clamor entusiasmado e patético por Unidade deve ser colocado. É verdade que as pequenas excelências se inclinam para a obediência, para a autoridade e para o sacrifício em nome do poder do Um. Isso é o fundamento do fascismo, mas também de todas as formas, brandas ou agressivas, de chauvinismo dos que se consideram eleitos.

Por mais interessante que seja considerar os personagens de Kafka como sintomas dos aspectos problemáticos da existência do próprio Kafka, resumidos na Carta ao Pai; por mais instigante que seja desconstruí-los como seres de linguagem que circunscritos às quatro linhas da autonomia do texto literário, acredito que ainda há o que se ganhar com o velho preconceito realista de ver nos relatos de Kafka uma tipologia social na qual se enraízam patologias persistentes e até virulentas.

 

 

 

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