Teses sobre Kafka (parte 4)

 


Tese 3

O fundamento da muralha é o medo.

 

“Ora, de antemão seria possível acreditar que fosse mais vantajoso em qualquer sentido construir de forma contínua, ou no mínimo continuamente dentro das duas partes principais da muralha. Conforme em geral se propala e é sabido, ela foi pensada como proteção contra os povos do norte. Mas como pode servir de proteção uma muralha cuja construção não é contínua? Com efeito, muralha assim não só não pode proteger, como a própria construção corre perigo constante. Essas partes de muralha abandonadas em região deserta podem ser destruídas facilmente e a todo momento pelos nômades, sobretudo porque, já então amedrontados pela construção, eles mudavam de morada com incrível rapidez, como gafanhotos, e talvez por isso conseguiram uma visão de conjunto melhor sobre os progressos da construção do que nós, os construtores. Apesar de tudo, a construção não podia mesmo ser efetuada de maneira diferente do que aconteceu. Para compreendê-lo é preciso levar em consideração o seguinte: a muralha devia tornar-se uma proteção por séculos: a construção mais cuidadosa, o uso da sabedoria arquitetônica de todos os tempos e povos conhecidos, o sentimento duradouro da responsabilidade pessoal dos que a faziam eram, por isso, o pressuposto indispensável para o trabalho. Nos trabalhos inferiores podiam na verdade ser empregados diaristas ignorantes do povo, homens, mulheres, crianças, quem quer que se oferecesse por um bom dinheiro; mas para dirigir quatro tarefeiros já era necessário um homem instruído e versado em matéria de construção; um homem capaz de sentir, na profundeza do coração, do que ali se tratavaE, quanto mais elevada a tarefa tanto maiores as exigências, naturalmente. Estavam à disposição, com efeito, homens assim, e, embora não na quantidade que a construção poderia absorver, sem dúvida em grande número.

A construção não foi empreendida com leviandade. Cinquenta anos antes do início, por toda a China que devia ser cercada pela muralha, declarou-se a arquitetura, especialmente a alvenaria, como a mais importante das ciências, e tudo o mais só foi reconhecido na medida em que estava relacionado com isso. Lembro-me ainda muito bem quando nós, crianças pequenas, mal seguras das nossas pernas, ficávamos no jardinzinho do nosso mestre e precisávamos construir uma espécie de muralha com seixos, e como o mestre, a túnica arregaçada, corria de encontro à muralha, naturalmente deitava tudo por terra e nos fazia tais censuras por causa da fragilidade de nossa construção, que nós saíamos berrando por todos os lados em busca de nossos pais. Um incidente minúsculo, mas significativo para o espírito da época”.

 

Como já vimos, a construção da muralha foi feita de maneira descontínua, levando alguns a suspeitar que as brechas entre os trechos construídos poderiam ser maiores do que a própria muralha. Mesmo que essa conjectura fosse infundada, caberia perguntar: “como pode servir de proteção uma muralha cuja construção não é contínua? Se a muralha fora pensada como proteção contra os nômades do norte, por que se adotou um método construtivo que expunha a própria muralha ao perigo? Os nômades poderiam destruir facilmente os trechos abandonados nas regiões remotas ou poderiam se deslocar rapidamente ao longo da construção e ter uma visão de conjunto da muralha e de suas brechas mais acurada do que a dos construtores.

Certas perguntas têm o condão de despertar um enxame de dúvidas. Quem faz a questão decisiva “como pode servir de proteção uma muralha cuja construção não é contínua?” também pode perguntar se os nômades do norte realmente ameaçavam o império; se os imensos recursos e o tempo dispendido na construção da muralha não foi malbaratados; se os altos dignitários do império sabiam o que estavam fazendo...

Para impedir que a questão decisiva, uma vez formulada, venha a engolfar o propósito da construção no Nada, o narrador se apressa a garantir que “Apesar de tudo, a construção não podia mesmo ser efetuada de maneira diferente do que aconteceu”.

A muralha deveria ser uma obra duradoura e, para isso, foi erigida de maneira cuidadosa, usando toda a sabedora acumulada e apelando ao sentimento de responsabilidade dos encarregados da construção, os quais, mesmo nos níveis hierárquicos mais baixos, deveriam ser homens instruídos e comprometidos com sua missão. O narrador parece apenas recitar uma arenga ouvida muitas vezes. Na falta de qualquer outra evidência, o narrador recorre a um incidente da sua infância como sinal de que não houve leviandade na construção da muralha. Na escola, o professor ordenava aos meninos construírem uma muralha de seixos. Em seguida, o professor avançava contra ela, derrubava-a e acusava as crianças de terem sido negligentes na execução. “Um incidente minúsculo, mas significativo para o espírito da época”.

Esse “incidente minúsculo” parece significar menos a preocupação coletiva com a técnica construtiva do que a necessidade de obedecer à voz da autoridade. A muralha de seixos não é derrubada por um grupo de meninos que brincam de bárbaros do norte. É o próprio professor que a destrói e acusava as crianças de não terem feito uma muralha mais sólida. Não é a cooperação coletiva que é ensinada, mas a impotência de muitos perante o poder do Um. Não se trata da encenação de uma construção, mas da encenação da obediência vivida e experimentada como culpa, a culpa de não ter feito uma muralha mais sólida. Não se trata de ter medo dos nômades do norte, mas de ter medo daquele que detém o poder.

Essa condição, própria de quem é subalterno - condição dos protagonistas de Kafka e de muitos de seus narradores -, está intimamente ligada à crença, típica dos moderados, de que há valores intrínsecos que resistem à controvérsia. Essa crença produz uma espécie de bolha de normalidade imune ao efeito corrosivo das questões niilistas sobre o valor e o ser. No entanto, mesmo dentro dessas bolhas de normalidade, os moderados de Kafka vislumbram algo do caráter aberrante do mundo e até são capazes de formular questões incisivas, mas qualquer tentativa de tirar conclusões é aparada pelo rápido recurso às frases feitas e ao bom senso miúdo. No final, os servidores empenhados, como o narrador, aceitam as ordens emitidas pelas instâncias elevadas da hierarquia, ainda que suspeitem do absurdo e despropósito desses comandos. O professor, de túnica arregaçada, avançando furiosamente contra a muralha de brinquedo, a gritar com os meninos, é uma lembrança inesquecível. “Um incidente minúsculo, mas significativo para o espírito da época”.

Se levarmos a sério a realismo de Kafka, devemos reconhecer que é a nosso respeito que a fábula fala. Nas bolhas de normalidade em que vivemos, também somos obscuros funcionários kafkianos ocupados com tarefas enobrecidas por belas palavras, embora às vezes suspeitemos do despropósito de tudo isso. Somos capazes de formular e confessar nossas dúvidas e insatisfações profundas, mas prosseguimos como antes, repetindo para nós mesmos: “Apesar de tudo, a construção não podia mesmo ser efetuada de maneira diferente do que aconteceu.” Para nós vale o princípio de que as bolhas de normalidade em que vivemos dependem de uma obediência culpada ao poder do Um, obediência que racionalizamos na forma de adesão a valores tidos como intrínsecos e incontroversos. Nesses valores intrínsecos vemos o fundamento da Ordem e da Justiça. Eles se nos apresentam como a porta da Lei sempre aberta. Porém a força fundamental da obediência culpada, também chamada de Medo, não nos deixa ingressar. E assim vivemos e morremos no limiar da porta da Lei, permanecendo sob o domínio do Medo sem jamais adentrar no domínio da Justiça. Mas será que a ideia de que, do outro lado da porta estava o domínio da Justiça não seria uma ilusão criada pela própria obediência medrosa? 

Por experiência própria e por convívio social, sabemos que essas discussões atraem atenção de muitos, mas logo voltamos às nossas bolhas de normalidade como faziam outrora os fiéis que ouviam, encantados, sermões de oradores famosos. Somente nas situações extremas é que o absurdo dos chamados valores intrínsecos (pelos quais racionalizamos a obediência medrosa ao poder do Um) vem à tona em toda a sua evidência, revelando quão frágeis são as bolhas de normalidade.

Primo Levi assim descreve os banheiros imundos do campo de trabalho:

“Na parede oposta, sobressai um enorme piolho branco, vermelho e preto, com a escrita: Eine Laus, dein Tod (um piolho é a tua morte), e o inspirado dístico: Nach dem Abort, vor dem Essen/ Hände waschen, nicht vergessen (depois da latrina, antes de comer, lava as mãos, não esqueça).” (1)

Um prisioneiro chamado Steinlauf se limpava o melhor que podia e recomendava que Levi fizesse o mesmo. A questão não era simplesmente aderir às práticas de higiene num lugar infecto a pouca distância dos fornos crematórios de Auschwitz. Para Steinlauf, o ritual de limpeza significava lembrar-se que ainda era um ser humano. Levi tinha dúvidas a respeito da validade desse propósito: “Frente a este mundo infernal, minhas ideias se confundem: será mesmo necessário elaborar um sistema e observá-lo? Não será melhor compreender que não se possui sistema algum?” (2)

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(1) Primo Levi, Se é isto um homem? Capítulo "Iniciação"

(2) idem, ibidem


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