Teses sobre Kafka (parte 3)

 


EXCURSO

O problema do realismo de Kafka


"Quando alguém bate na tecla do “realismo kafkiano”, 

que é o caso dos maiores analistas de sua obra, 

como Wilhelm Emrich, Günther Anders, Walter Benjamin e Theodor Adorno

a reação é de estranhamento, quando não de descrença. (1)

 

Kafka seria um realista? Os estudiosos dizem que sim, mas o leitor médio resiste a aplicar epíteto “realista” a narrativas como A metamorfose, na qual supostamente estaria a “essência” da obra de Kafka.

 

O leitor médio é aquele que lê por necessidade escolar ou movido pela curiosidade. Mesmo quando lê com frequência, sua leitura sempre é avulsa e ocasional. Ele lê o que calha de chegar às suas mãos: o último lançamento elogiado nas resenhas, o livro indicado pelo professor, pelo amigo ou por algum influencer do Youtube, a edição de capa chamativa ou o achado barato num sebo. Movido por aquele impulso que Bourdieu chama de “boa vontade cultural”, o leitor médio tem o desejo de elevar o seu nível cultural, lendo obras consideradas prestigiosas, na crença de que o prestígio das obras lidas (independentemente da qualidade dessa leitura) seja transferido para a conta dele, aumentando-lhe o capital cultural. Uma citação de Dostoievski ou de Maquiavel, mesmo que banal e lançada a esmo, truncada e torcida em seu sentido, pode valer tanto quanto um cigarro entre os detentos na cadeia.

 

Para o leitor médio, mesmo para aqueles que foram além de uma leitura apressada d’A Metamorfose, o adjetivo “kafkiano” pertence ao mesmo universo confuso e vago ao qual são atirados conceitos tão diferentes quanto o de surrealismo, realismo fantástico ou literatura do absurdo. Há mais equívocos aí do que alguém poderia deslindar ao longo de toda uma vida de esforço paciente, mas o princípio de caridade – que não é uma indulgência, mas uma exigência hermenêutica – exige que se reconheça que o leitor, embora equivocado, não está de todo errado em sua descrença e estranhamento diante dos críticos que falam do realismo de Kafka.

 

O problema não está no leitor, mas no termo “realismo”. Mesmo para quem se limita, como eu faço aqui, à sua aplicação no plano literário, o termo carrega um peso bem maior do que os processos de mimesis que os críticos literários descrevem tão bem. É que, por mais que leitores e críticos reconheçam a distância e a diferença entre “literatura” e “realidade”, entre o texto que recorta e seleciona o objeto por meio de recursos estilísticos, e a realidade vivida ou concebida em sua presença concreta, bruta e envolvente, o uso do termo “realismo” sempre representa compromissos ontológicos, deontológicos e epistemológicos que vão muito além das considerações estéticas às quais os críticos literários gostariam de se restringir ao falar do “efeito de realidade”.

 

Por mais que alguns possam espezinhar a defesa do realismo por parte de um pensador importante como György Lukács, ninguém pode negar que ele levou a sério o desafio de entender o “realismo” num plano que não é simplesmente estético, estilístico ou literário. Nesse aspecto específico, Lukács é o paladino do leitor médio, para quem o termo “realismo” jamais é apenas uma marca estética ou efeito do texto, mas um compromisso tácito e abrangente com algo reconhecido como a “realidade”: uma totalidade envolvente, que se apresenta de modo imediato e empírico, mas cujos nexos podem vir a ser conhecidos pelo esforço de investigação, e que é dotada de um sentido construído pela ação humana individual e coletiva, aquela que o velho marxismo ocidental dos anos 20 e 30 chamava de “práxis”.

 

Essa promoção filosófica do “realismo” – da qual eu mesmo sou devedor consciente e grato – não deve nos fazer recuar diante do problema colocado pela obra de Kafka, que parece inverter e negar a premissa de que a realidade é uma totalidade articulada, dotada de sentido e aberta ao esforço de compreensão e esclarecimento. O desafio para quem vê em Kafka um realista é dar conta daquela afirmação paradoxal do conto “Tribulações de um pai de família”: O todo na verdade se apresenta sem sentido, mas completo à sua maneira.

 

É essa tarefa que vamos enfrentar.

 

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 (1) Modesto Carone, "O realismo de Kafka", Novos Estudos, CEBRAP, nº 80, São Paulo, março de 2008

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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