Teses sobre Kafka (parte 2)


 

Tese 2

Todo leitor que usa o adjetivo “kafkiano” é um potencial personagem de Kafka

 

Sucedeu assim que foram formados grupos de aproximadamente vinte trabalhadores que precisavam erguer uma muralha parcial de cerca de quinhentos metros de comprimento, enquanto um grupo vizinho construía em sua direção outra muralha do mesmo comprimento. Mas depois de completada a união não se prosseguia mais a construção no final desses mil metros; em vez disso os grupos de trabalhadores eram deslocados para regiões totalmente diferentes visando à construção da muralha. Naturalmente surgiram assim muitas brechas grandes que só foram preenchidas devagar ao longo do tempo, algumas delas só depois que já tinha sido anunciada a conclusão da muralha. Devem sim existir brechas que não foram absolutamente obstruídas - para muitos, bem maiores que as partes construídas, - uma afirmação porém que possivelmente faz parte das muitas lendas que surgiram em torno da construção e que não podem ser verificadas, ao menos por uma pessoa isolada, com os próprios olhos e o próprio critério, em virtude da extensão da construção. (1)

 

Um das opiniões mais persistentes a respeito de Kafka é a de que suas narrativas descrevem um mundo fantástico, absurdo ou, pelo menos, estranho. Um mundo em que a vida rotineira seria solapada por eventos bizarros, para os quais foi inventado o adjetivo “kafkiano”. O início ex abrupto de A Metamorfose, obra que se tornou parte da bagagem cultural do leitor médio (2), muito contribui para o juízo ontológico, epistemológico e moral contido nesse adjetivo. O leitor que considera uma situação “kafkiana” lê as narrativas de Kafka como a descrição de um mundo que se desvia da normalidade e entende que o caráter fictício dessas narrativas está justamente nesse desvio. No adjetivo “kafkiano” está implícita a suposição de que o mundo real, por oposição ao mundo fictício de Kafka, é o domínio da normalidade. Isto quer dizer que, apesar dos imprevistos, dos desastres, dos conflitos e das incongruências do mundo real, existiria um núcleo estável e irredutível de fatos, de verdades e de normas que balizam os limites do que existe e pode vir a existir (plano ontológico), do que conhecemos e podemos vir a conhecer (plano epistemológico) e de como devemos agir (plano moral).  Essa crença implícita na normalidade do mundo é o arcabouço e estrutura da experiência comum, mas ela é constantemente posta à prova pelos acontecimentos. Daí que os nossos juízos a respeito do mundo (decorrentes da estrutura da experiência comum) sejam o tempo todo desafiados pelo choque, surpresa ou decepção decorrente dos acontecimentos. O que eu chamei de “fundamentalismo dos moderados” no capítulo precedente é o ato de recusar as evidências refutadoras trazidas pelos acontecimentos. O moderado fundamentalista recusa o aprendizado que decorrente da assimilação dos acontecimentos imprevistos. Ele subestima ou ignora a lição da imprevisibilidade dos acontecimentos e se mantém firmemente agarrado ao que considera ser o chão firme de fatos, verdades e normas fundamentais.

 

Se, conforme dissemos antes, o mundo ficcional de Kafka é habitado por moderados fundamentalistas, conscienciosos, devotos das verdades fundamentais e metódicos na repetição dos gestos cotidiano, nada há de fantástico ou de absurdo nas obras de Kafka. O estranhamento que certamente elas nos causam não vem de alguma anormalidade do seu mundo ficcional, mas antes de um paralelismo entre esse mundo ficcional e o nosso mundo vivido (3) e da clareza com que Kafka expõe as frágeis e banais tentativas dos moderados em apegar-se ao chão firme dos fatos, verdades e normas apesar de todas as evidências refutadoras. Trata-se de fornecer a “prova de que até meios insuficientes – infantis mesmo – podem servir à salvação”, conforme diz o conto O Silêncio das Sereias. Acredito que uma narrativa como Durante a construção da muralha da China fornece de maneira mais explícita do que A Metamorfose ou O Processo (e talvez por isso mesmo, com resultado estético menos satisfatório), uma espécie de fenomenologia da consciência dos “moderados”, que pode elucidar alguns aspectos importantes da literatura de Kafka e ainda um ou dois problemas da nossa experiência contemporânea.

 

Durante a construção da muralha da China fala de um trabalho coletivo, colossal, longo e metódico em torno do qual se concentraria toda a vida espiritual de uma nação (4). A grande muralha teria sido erigida pois dois exércitos de construtores, um do sudoeste e outro do sudeste que, convergindo em direção ao Norte, enfim se reuniram e concluíram a muralha. Esses exércitos estavam divididos em equipes de vinte homens. Cada uma construía um trecho de quinhentos metros enquanto a outra fazia o equivalente em sentido contrário. Quando as duas equipes se encontravam e mil metros de muralha estavam terminados, os trabalhadores eram deslocados para lugares distantes, ao invés de estender o trecho já realizado. Esse método de trabalho de obter a totalização por meio do estrito fracionamento das tarefas delegadas aos trabalhadores, é amplamente conhecido e nada tem de estranho. O resultado, porém, é que a muralha foi feita de maneira descontínua e fragmentada:

 

Naturalmente surgiram assim muitas brechas grandes que só foram preenchidas aos poucos e devagar, algumas delas só depois que já tinha sido anunciada a conclusão da muralha.

 

Essas brechas resultantes do método adotado contrariavam o propósito declarado da construção: proteger a China contra invasões de bárbaros do Norte. Era preciso, então, que as brechas fossem fechadas, operação lenta que continuou depois do anúncio da conclusão da muralha protetora, de modo que a muralha não estava terminada quando os dois exércitos de trabalhadores se reuniram na porção setentrional. Assim, a asserção inicial de que “A muralha da China foi terminada no seu trecho mais setentrional” não seria a constatação do fato de que a muralha está realmente pronta, mas apenas um anúncio oficial de teor político e propagandístico, anúncio que o narrador repete sem considerações críticas e que contrasta com a informação de que “naturalmente” (natürlich) surgiram brechas que exigiram um longo trabalho de preenchimento depois do término da obra. O advérbio “naturalmente” é tão espantoso quanto a serenidade da asserção inicial e procede da mesma atitude de tranquila moderação: o mesmo processo de trabalho que erigiu a muralha tinha como resultado óbvio e espontâneo, o surgimento de brechas muito grandes, que precisavam ser fechadas. Pareceria razoável supor que, depois de certo tempo, o esforço de preenchimento das lacunas da muralha fosse completado, pois de nada serviria uma muralha com brechas, mas o narrador, que até agora se mantinha no campo assertivo dos fatos e dos anúncios oficiais, desliza para o campo hipotético das possibilidades, dos boatos e lendas:

 

Devem sim existir brechas que não foram absolutamente obstruídas - para muitos, bem maiores que as partes construídas, - uma afirmação porém que possivelmente faz parte das muitas lendas que surgiram em torno da construção e que, ao menos para uma pessoa isolada, com os próprios olhos e o próprio critério, não pode ser verificada em virtude de sua extensão.

 

Apesar do anúncio do término da construção e de todo o trabalho posterior de preenchimento das brechas, era possível que ainda existissem brechas que, segundo pensavam alguns, seriam ainda maiores do que a parte construída.  Essa hipótese solapa o discurso oficial, o propósito da muralha, o esforço coletivo de construi-la e até a sua existência. O trabalho de milhares de construtores teria produzido um nada, uma não-muralha maior do que a muralha da China. Esse horror metafísico, profundamente cômico na inversão surpreendente de expectativas, é exorcizado pelo narrador, que a empurra para o reino das lendas à qual ela pertenceria “possivelmente” (möglicherweise).

 

Ao longo do primeiro parágrafo, do ponto de vista da voz narrativa, partimos do enunciado de um fato, que se revela um mero anúncio oficial, à medida que somos notificados a respeito das lacunas da muralha e das suspeitas de que a construção estava engolfada pelo não-ser.  Embora o narrador proceda sempre com uma tranquilidade protocolar, vislumbramos com crescente inquietude (que tem um efeito cômico inegável) o curioso processo antitético da construção, quase um trabalho de Penélope. O trabalho de erigir (erbauen) a muralha fazia surgir (entstehen) algo que era oposto à existência e propósito da muralha: o surgimento de muitas brechas (Natürlich entstanden auf diese Weise viele große Lücken) e o surgimento de muitas lendas (zu den vielen Legenden gehört, die um den Bau entstanden sind). Era preciso lidar com essas formas de não-ser (a lacuna e a lenda) a fim de saná-las.

 

Para lidar com as brechas que surgiram com o ato de erigir (erbauen) a muralha, era preciso obstruir (verbauen) as lacunas.  Esse trabalho de obstrução prosseguiu muito tempo depois de que o trabalho de construção tinha sido dado por concluído pelas autoridades e talvez não tenha sido concluído. Diferentemente do ato de erigir (erbauen), com sua tonalidade positiva de realização e completude, o ato de obstruir (verbauen) está associado à incompletude, ao bloqueio. É uma diferença análoga à que existe entre “tecer” e “remendar”.

 

No tocante às lendas, garante-nos o narrador que as suspeitas sobre as brechas imensas não poderiam ser comprovadas empiricamente devido à desproporção entre a escala colossal da muralha e a escala do indivíduo isolado, que conta apenas com seus próprios olhos. Todavia, o narrador não parece se dar conta de que a impossibilidade de verificação empírica não constitui um argumento contra a lenda e os boatos, mas é a própria razão de seu surgimento, pois se é impossível verificar se as brechas são maiores do que a muralha, também é impossível verificar se a muralha é maior do que as brechas. Ao final, tanto as brechas quanto as suspeitas persistem e ficam na mente do leitor, enquanto o narrador – com a tranquilidade própria dos moderados – passa a adiante.

 

A unidade entre o fazer e o desfazer, a presença e a lacuna, o fato e a lenda, a construção e a obstrução seriam bizarrices ou estranhezas exclusivas do mundo ficcional de Kafka? Com o risco de ser considerado niilista, eu digo que não. Contudo, seria cabível falar de um realismo em Kafka? Eis uma questão para o próximo capítulo.


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Notas

(1) Eu sigo a tradução de Modesto Carone (Narrativas do Espólio, Companhia das Letras, 2002), mas fiz, por conta própria, algumas modificações a partir da edição da Sämtliche Werke, Suhrkamp Verlag, 2008.


(2) O leitor médio é aquele em que se sedimentam os juízos e impressões de milhares de leitores amiúde ainda imaturos, outras vezes aborrecidos ou distraídos, os quais, seja por causa das obrigações curricular, seja por desfastio, seja devido àquela “boa vontade cultural” que Bourdieu estudou em A distinção, acabam por aproximar-se das obras reputadas "essenciais" para a formação cultural.


(3) Em seu paralelismo com o mundo real, a ficção de Kafka ganha às vezes um ar maroto e paródico, cheio de um humor que o leitor médio frequentemente não percebe devido à crença de que esses relatos falam de um mundo anormal, diante do qual a reação seria de estranheza e mal-estar, mas não de riso aberto. Max Brod conta que Kafka chorava de rir quando lia suas narrativas aos amigos.  É preciso recuperar esse riso.


(4) Segundo Günther Anders, os chineses do conto seriam os judeus e a muralha seria a Torá: “Parte considerável da obra de Kafka trata dos judeus (...) Na obra denominada A Muralha da China, a palavra ‘judeu’ chega até a ser substituída pela palavra ‘chinês’” (Günther Anders, Kafka: pró e contra, Perspectiva, 1969, p. 16); “Muita coisa, aliás, aponta no sentido de que aquela muralha, apresentada como sistema de fragmentos de muralha até que estes se unam  deve representar a Torá, com que os judeus se emuralham. Os fragmentos, erigidos por toda parte e sem visão de conjunto, são as partes da Torá que emergem nos mais variados “lugares da história” e que, juntas, produzem o todo”  (op. cit., p. 38).

A interpretação proposta por Anders se refere ao significado metafórico da muralha. O problema de que eu trato é outro: interessa-me saber as implicações do método de construção descrito por Kafka. A abordagem de Anders é fortemente marcada pela questão judaica, pela fenomenologia, pelo existencialismo e por uma interpretação humanista do marxismo, que põe em foco a alienação e a reificação. A minha interpretação é antes uma combinação de close reading, leitura materialista e atitude pirrônica que deve muito, respectivamente, a Antonio Candido, Roberto Schwarz e Oswaldo Porchat, herança intelectual que me é preciosa nas circunstâncias dos desastres atualmente em curso no Brasil. 

 

 

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