Teses sobre Kafka (parte 1)


 

  

Há tempos um colega estranhou que eu colocasse Kafka acima de Joyce e de Proust como o escritor definitivo do século XX. Diante da exuberância linguística, imagética e psicológica dos universos ficcionais de Joyce e de Proust, por que iria eu preferir a aridez do mundo enclausurado de Kafka? Não seria essa opção ascética uma espécie de cegueira à grande arte ou uma negação niilista e, no limite, perversa, do que nos torna humanos? 


Para aplacar a indignação velada do colega, que me olhava cheio de censuras morais e estéticas, aleguei minha relação idiossincrática com a literatura e lhe prometi uma resposta para daí a três semanas. Três anos depois resolvi que estava na hora de pagar a dívida. Na impossibilidade de percorrer toda a obra de Kafka, convido o meu colega e os eventuais leitores a lerem comigo o conto Durante a construção da muralha da China.

 


Tese 1

O fundamentalismo dos moderados



"A muralha da China foi terminada no seu trecho mais setentrional".


A declaração inicial é espantosa e trivial. O narrador, que foi mestre de obra durante a construção, poderia nos dar o testemunho emocionado do esforço coletivo ou alçar o canto épico da proeza colossal, porém, ao invés disso, oculta na voz passiva o agente da ação e apara, na concisão impessoal, qualquer a subjetividade do enunciador. No seu modo indicativo, a declaração inicial adota a forma protocolar com que registram-se os fatos.

 

Os fatos são estados do mundo cuja positividade (isto é, autenticidade, objetividade e relevância) passou pelo escrutínio de certas instituições, entre as quais as agências de notícias, a comunidade acadêmica, a investigação policial e o poder judiciário. Validados por essas instituições, os fatos podem ser noticiados, arquivados, tabulados, ensinados ou usados como provas para aceitar ou refutar certas asserções. 

 

Em sua positividade, os fatos se impõem aos mitos, às ficções, às especulações, às mistificações, aos boatos, às fake news. Um conhecido adágio diz que "os fatos falam por si mesmos", razão pela qual o interlocutor que ignora os fatos faz figura de ignorante ou ingênuo. E aquele que tenta contestar um fato, vê-se na obrigação de apresentar outros fatos, devidamente validados. As disputas políticas e as batalhas para ganhar corações e mentes parecem girar em torno dos fatos aduzidos pelas partes contendoras, de maneira que parecemos nunca se sair do circuito da positividade em que os fatos são aferidos, validados e postos em circulação como moeda corrente da conversação e das relações sociais, seja na fala dos peritos, seja nas ilações do diletantes.


No entanto, da mesma maneira que as moedas correntes, os fatos deixam de falar por si mesmos quando as estruturas de validação entram em crise. As partes em disputa não reconhecem os fatos alegados pelo lado oposto e acusam os rivais de aderirem a “narrativas” equivocadas, fanáticas, fictícias, falaciosas, manipulatórias e malévolas. Os fatos perdem sua força probatória. O circuito da positividade se rompe e desvelam-se brechas que parecem ameaçar os consensos (supostos) que fundam o contrato social.


Quando os consensos colapsam, sempre há os que se apresentam como moderados. Chocados com o conflito, eles sustentam que existe um núcleo indelével, eterno e devidamente balizado de fatos, normas e valores do qual alguns - os "extremistas"- se afastaram e se perderam. Por acreditarem nesse núcleo fundamental, os moderados não admitem ser uma das partes em litígio. Eles veem a si mesmos como juízes. O dissenso seria apenas uma anomalia, uma forma de incompreensão ou ignorância por parte daqueles que não veem ou não aceitam a evidência das verdades fundamentais. Justamente por se afirmarem portadores de verdades fundamentais que estariam acima dos partidos,  os moderados são o verdadeiro partido da ordem. Um partido cuja militância consiste na repetição: a insistência na retomada e manutenção dos mesmos gestos e dos mesmos discursos, ignorando calmamente as brechas.


Nas obras de Kafka, os personagens agem como os moderados das sociedades em conflito. Eles acreditam enunciar fatos que falam por si mesmos ("A muralha da China foi terminada no seu trecho mais setentrional"), mas veem-se enredados em aporias quando as surgem brechas e as instituições se mostram insensatas, arbitrárias e opacas, de modo que os consensos (supostos) se esfumam numa névoa de dúvidas, suspeitas e versões conflitantes sobre os acontecimentos. É o que veremos no próximo capítulo.




Comentários

  1. Ando muito precisando ficar em silêncio, e lembrei que você era bom nisso. Os anos te fizeram mais ou menos calado? Os tempos, mais cético, certamente, não?

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    1. As palavras me cansam tanto quanto os gestos. As palavras são tensas e cobram respostas. Daí meu gosto pelo silêncio. Na melhor das hipóteses, o silêncio é transfigurador. Ele cria recuos para que as palavras possam ressoar como poesia e, quem sabe, o mundo se dê como epifania. Em último caso, o silêncio suspende a bobagem ou o lugar-comum que estamos todos sempre prestes a regurgitar.

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    2. Ora, professor, não culpemos as palavras, que elas são só vítimas de nós, ruidosos bobos e regurgitadores de lugares comuns. São tão libertadoras e parte das respostas quanto o silêncio que as cerca. Mas, sim, esses recuos me parece que nos cairiam muito bem como hábito, andamos carentes de epifania. Mais ainda de poesia. Ouvi dizer que isso é cíclico...
      Obrigada pela resposta.

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  2. Caro Valdir,

    Também os personagens em Proust não agem como "moderados"? Os salões de Verdurin não parecem uma reunião de filisteus moderados? E não são as memórias involuntárias as únicas coisas "não-moderadas" na obra-grande, dado que contrasta e confirma o "moderamento" dos personagens proustianos?

    A.

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    1. Eu concordo e acrescentaria que essa moderação de salão elegante (seja du côté de chez Swann seja du côté de Guermantes) é exatamente aquela do qual Jean Renoir nos deu um retrato satírico em "A regra do jogo". Mas a moderação que vejo em Kafka não é a exatamente esse cálculo mundano e filistino dos personagens de Proust e de Jean Renoir. Seria antes uma "encolhimento" ontológico:
      a convicção profunda de que está tudo bem, apesar do carrasco que bate à porta, ou a esperança de que a peste seja curada com cloroquina.

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