Sobre os que precisam de deuses


 

Grandes pensadores religiosos apresentaram a fé como um salto ou uma aposta. Ter fé seria nadar contra a corrente das expectativas mundanas. Estar no mundo sem ser do mundo. Viver no coração da transcendência, um absurdo perante a sabedoria dos homens - essa sabedoria arrogante que os gregos chamavam de filosofia.

 

A oposição entre fé e mundo - que lemos em Paulo apóstolo, em Agostinho, em Pascal e em Kierkegaard - é um maravilhoso dispositivo retórico-teológico, que não resiste ao exame empírico do comportamento humano. A fé em deus(es) brota abundante como as ervas daninhas no terreno baldio da experiência cotidiana. Os seres humanos se prestam muito facilmente à adoração do invisível, à invocação de entes supremos, à barganha com o divino, aos êxtases, às revelações e à sondagem dos mistérios arcanos.

 

Crer em deus(es) é fácil. Sua existência parece ser solicitada o tempo todo pelas mais diversas razões. O nosso desamparo nos faz querer um pai benigno e protetor; a nossa ignorância demanda respostas e algum fulano supremo que possa fornecê-las; a nossa preguiça recusa as investigações longas e metódicas; a nossa vontade de ordem e de sentido está disposta a ver em tudo a mão do relojoeiro; o nosso anseio de justiça quer um juiz que castigue as ofensas que recebemos e perdoe as nossas faltas; nossa gramática precisa de um sujeito para o verbo “criar”. Crer em Deus é preencher a nossa precariedade feita de fraquezas, desejos e esperanças. Ele é a palha com que estofamos as lacunas ontológicas.

 

Por isso nada é mais mundano do que ter fé, isto é, acreditar de que há uma ordem no mundo, a qual, mesmo de maneiras insondáveis, recompensa justa e generosamente os bem-amados de algum ente superior. O que é difícil e desafia o mundo é abrir mão desse dispositivo teológico, cuja retórica  se faz presente na vida política de tantas nações hoje. O caminho difícil nunca foi o da fé, mas o da lucidez.

 

Ao invés da ordem justa e generosa que os deuses oferecem, tenho para mim que o mundo é  a confusão, o misto, o tudo ao mesmo tempo, sem diagrama nem centro reconhecível, bruto e vário, emaranhado e cheio de pontas. O que resiste ao nosso esforço de investigação. O que nos pega de surpresa, refuta nossas hipóteses e desengana nossas ilusões. A falha que ultrapassa a margem de erro prevista, pois nunca conseguimos ultrapassar a zona fronteiriça entre as regularidades e correlações pacientemente acumuladas e o fundo geral de aleatoriedade. Quem quer que sejam e onde quer que estejam, os deuses jogam dados com hipercubos.

 

Incertos quanto à essência, à origem e ao destino dos seres, podemos apenas circum-navegar as coisas, alterando os pontos de vista, fazendo medições por paralaxe, corrigindo as estimativas prévias. O método de conhecimento consiste na multiplicação de perspectivas, com alguma esperança de que a rotação em torno do objeto venha a ser aproximação assintótica. 

 

As tarefas do pensamento são bem modestas: traçar mapas, estabelecer relações, enumerar impasses, medir graus de relevância, classificar os objetos em famílias, formular tábuas de categorias. No entanto, esse percurso é guiado por uma imensa ambição de totalização que deve permanecer como ponto de fuga no horizonte. 

 

Dado que não podemos desvendar a mola íntima da máquina do mundo, tampouco mostrá-la em sua inteireza de coisa-em-si, temos que humildemente reconhecer que o pensamento não se apoia somente na potência da dedução rigorosa. É que, destituídos de certezas, os objetos nos aparecem inseparáveis da força do verbo que os decifra. Devido à condição frágil e humana do nosso conhecimento, a investigação rigorosa não pode prescindir da exposição persuasiva.  A lógica não nos basta e carecemos de poesia e retórica. Como sabem os apaixonados, o amor ganha a forma ilusória e instável das palavras que tentam defini-lo, enquanto a coisa-em-si se agita, inominável e imprevisível. Quando lidam com as palavras, os filósofos deveriam estar sempre conscientes disso. Trata-se de uma exigência de lucidez.

 

Post-scriptum

Aqueles que têm fé costumam dizer que os ateus e descrentes voltam a acreditar em Deus quando diante da iminência da própria morte. Os que têm fé não percebem que essas conversões religiosas in extremis (que não sabemos se são tão frequentes assim), ao invés de refutar o ateísmo, apenas confirmam que a fé tem origem no medo, que a fé é um resultado da fraqueza do animal que somos. O ser humano é frágil e se agarra a todas as formas de wishful thinking. É preciso ter a lucidez de reconhecer essa fragilidade e entender que numa crise como a que vivemos hoje, com uma pandemia que matou 140 mil pessoas no Brasil, os medos e as esperanças são capitalizados por uma legião de sacerdotes e pastores, que trabalham para sistemas organizados de assistência. A má notícia é que o medo e a esperança são inextirpáveis e os sistemas de assistência conhecidos como "igrejas" têm uma capacidade ilimitada de aproveitar-se dessa matéria-prima de origem animal. Os sacerdotes, pastores e missionários são os grileiros que vão tomando posse desse vasto território da fragilidade humana.


 

 

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