NOSSA CULPA DE ONTEM
O que me entristece na cena política atual:
No nível nacional, é a ausência de oposição devido à profunda
desorientação do PT, ao isolamento do PSOL (a voz que clama do deserto) e aos
grandes egos machucados de Lula e Ciro.
A partida política tem sido disputada no campo do Executivo X Judiciário, com a imprensa dando pitacos. A oposição parlamentar, a exemplo do senador Randolfe Rodrigues, limita-se a entrar com processos e devolver a bola para o Poder Judiciário.
Desde 2006, com o julgamento do "Mensalão", os magistrados saíram da sua discreta penumbra. Os nomes dos juízes do Supremo Tribunal Federal se tornaram tão familiares aos leitores de jornais quanto o dos políticos mais ruidosos. A vida política brasileira foi judicializada e o Judiciário se abriu ao espetáculo. A Operação Lava-Jato levou essa exposição ao paroxismo no conhecido episódio do "Powerpoint do Dallagnol". A judicialização da vida política têm ido muito além do ativismo jurídico de procuradores da república desejosos de fama.
No final de julho deste ano de 2020, o juiz Dias Toffoli chegou a
afirmar que, na ausência de mecanismos eficientes de autorregulação das
redes sociais, que se tornaram instrumentos políticos de propagação de
"fake news" (a denominação fashionable para o que antigamente se
chamava mentiras, lorotas e calúnias), o Poder Judiciário deve assumir o papel
de "editor" do país: "Sempre há um editor. O editor virá a ser o
Poder Judiciário, se houver um conflito e ele for chamado. E o Judiciário não
tem a possibilidade de dizer 'isso eu não julgo', nós temos de julgar. Enquanto
Judiciário, enquanto Suprema corte, nós somos editores de um país inteiro."
No nível internacional, é o esgotamento das propostas sócio-econômicas.
Tudo se resume a afirmar a atuação do Estado como agente catalisador do
crescimento ou a reduzir o papel econômico do Estado para estimular os agentes
econômicos privados. Se alguns sociólogos e historiadores de esquerda, como o
falecido Immanuel Walerstein, estão certos, a crise que vivemos é mundial,
sistêmica, profunda e sem volta. As terapias econômicas convencionais expressas
no binômio Estado-Mercado vão fracassar e agravar a instabilidade política e
social das próximas décadas. Diante disso, podemos torcer para que esses
pensadores de esquerda estejam errados e que o capitalismo dure mais tempo (eu
não sei se a esquerda quer isso) ou torcer pelo colapso do sistema (que
cobrará um preço altíssimo do ponto de vista social e levará gerações para se
reorganizar de uma forma nova, mas não necessariamente mais justa do ponto de
vista social).
2.
A ciência política pode nos ajudar a entender o alcance e os
limites do recente aumento de aprovação do capitão Bolsonaro; a análise econômica
pode evidenciar os impasses estruturais do capitalismo mundial, mas é a literatura brasileira que nos permite compreender a condescendência
ou indiferença de grande parte da população brasileira (independentemente de
classe social) às estrepolias criminosas de Bolsonaro.
Vamos lembra que:
Memórias de um Sargento de Milícias (1852) já nos mostrava o
sistema escuso de troca de favores que permitiu a um desocupado irresponsável
como Leonardo se tornar sargento de milícias no Rio de Janeiro e casar-se com a
jovem herdeira de uma pequena fortuna. Antonio Cândido, na sua "Dialética
da Malandragem", ensinou-nos a ver os laços que unem o mundo da Ordem e da
Lei e o mundo da Desordem e da Malandragem.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), o protagonista-narrador
começa por dizer que, pouco antes de morrer, esperava ficar famoso com um
emplastro capaz de curar até melancolia. Retrato de uma elite cínica e
irresponsável, que tenta lucrar com panaceias.
No romance Quincas Borba (1890), um
autoproclamado filósofo e guru alega ter descoberto que a sabedoria consiste em
aceitar que a vida é uma disputa cruel na qual somente alguns sobrevivem e
prosperam: "Ao vencedor, as batatas!"
Em Os Sertões (1902), o Exército avança contra uma
comunidade de sertanejos pobres e, depois de várias demonstrações de
incompetência, acaba por exterminar a população do arraial de Canudos. Pobreza,
desespero e messianismo por parte dos sertanejos. Incompetência, crueldade,
genocídio por parte do Exército brasileiro.
O Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915) não nos legou apenas a análise da derrocada das ilusões patrioteiras de uma boa alma. Lima Barreto nos mostrou muito mais: a mediocridade dos generais de pijama, dados a bravatas e preocupados com soldos e pensões, os burocratas bajuladores e carreiristas e a erudição de araque dos bacharéis e, sobretudo, o retrato do Marechal Floriano Peixoto, que tantos idolatravam:
"O entusiasmo [de Policarpo] por aquele ídolo político era forte, sincero e desinteressado. Tinha-o na conta de enérgico, de fino e supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do país (...) Entretanto não era assim. Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita preguiça. (...) Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às obrigações dos seus cargos.
(...)
A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia, nem a aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se. Levada a coisa ao grande o portar-se mal era fazer-lhe oposição, ter opiniões contrárias às suas e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e morte. (...)
Demais, a sua fraca educação militar e a sua fraca cultura deram mais realce a essa concepção infantil, raiando-a de violência, não tanto por ele em si (...) mas pela fraqueza com que acobertou e não reprimiu a ferocidade dos seus auxiliares e asseclas".
No começo da década de 1920, Oswald de Andrade explicava o poder e
o arbítrio dos chefões locais que comandam a vida política brasileira:
SENHOR FEUDAL
Se Pedro Segundo
Vier aqui
Com história
Eu boto ele na cadeia.
Em Macunaíma (1928), o "herói de nossa gente" é um
anti-herói cínico que pode mudar de aparência ou de opiniões a qualquer momento,
passando da ternura à crueldade, do carinho à safadeza.
Em Vidas Secas (1938), o sertanejo Fabiano é surrado pela polícia.
Sofre mas se cala pensando que não adianta lutar contra isso: "Governo é
governo". Fabiano é espoliado no seu salário. Sofre mas se cala pensando
que não adianta lutar contra isso: "Patrão é patrão".
Na peça O Bem-Amado (1962) de Dias Gomes, temos bela análise do
receituário da velha política brasileira, à altura das reflexões de Jefferson
(o Roberto, não o Thomas).
Os romances e contos de Rubem Fonseca, desde a década de 1960,
percorreram os meandros criminosos que ligam as elites e as favelas, sem
abolir a estrutura de classes.
As letras de Sobrevivendo no Inferno (1997), dos Racionais, e os romances Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, e Capão Pecado (2001), de Ferréz estão aí para nos lembrar que a periferia vive há muito nesse inferno que a esquerda universitária de classe média só agora começa a perceber.
Tudo isso, sem esquecer a contribuição do cinema: Terra em Transe (1967),de Glauber Rocha; Iracema, uma Transa Amazônica (1975), de Orlando Sena e Jorge Bodanzky; Pixote, a lei do mais fraco (1980), de Hector Babenco; Cronicamente Inviável (2000), de Sérgio Bianchi; O som ao redor (2012), de Kleber Mendonça Filho.
3.
Em resumo, nós, da esquerda, temos que parar com essa besteira de
que "as coisas estavam indo bem e os indicadores sociais estavam
melhorando". O poço é profundo há muito tempo, como sabem as comunidades indígenas
e todos o pretos pobres. Não adianta botar a culpa apenas na ditadura
militar, no golpe de 2016, na eleição do Jair.
Antes de acusar a "burrice do povão", ou de parcela do
povão, nós temos que reconhecer que a nossa culpa é de ontem. Jair Bolsonaro não é um corpo estranho que invadiu a
"normalidade institucional brasileira". Ele é produto dessa
"normalidade". Ele é a planta que cresceu ao longo dos anos da nossa
"normalidade democrática", enquanto os massacres iam se sucedendo (Carandiru, Candelária, Vigário Geral, sem mencionar a matança diária de índios
e jovens negros pobres).
Nós temos que reconhecer que o palhaço genocida é a cara da nossa história e da nossa sociedade. Bolsonaro é tão Brasil quanto o Coronel Brilhante Ustra, Filinto Müller ou os bravos soldados da Campanha de Canudos.
Belo texto, muito bem ilustrado com o que temos de melhor em nossa literatura.
ResponderExcluirSou do interior, região de Araçatuba (onde a agropecuária é forte e Bolsonaro é quase unanimidade), e diante dessa conjuntura também me dou conta que o fenômeno bolsonarismo é mais complexo do que parece, não é coisa desvinculada da formação do nosso país.
Os bastidores na política e o papel da mídia no tapetão em Dilma mostram a fragilidade da democracia em que vivemos. As contradições que aqui existem permitem que as pessoas se digam liberais defendendo pautas reacionárias, que a classe média se enxergue como elite, enquanto aplaudem seus próprios direitos sendo ceifados. Triste é ver os movimentos neoliberais pegando carona e desmontando o Estado, "passando a boiada", solapando pautas ambientais, étnicas e sociais.
Conversando com amigos tento entender o porquê desse apoio incondicional ao governo, e o que mais me desanima é o pobre "debate" sempre cair no "PT era bem pior, a corrupção era imensa". Vejo que é urgente combater as fake news, ter paciência nas conversas cotidianas, com informação de qualidade. Esperamos, enfim, abrir os olhos dos nossos irmãos que não perceberam ainda a gravidade dos fatos recentes.
Um grande abraço.
Guilherme