A respeito das atrocidades





A respeito das atrocidades cometidas nas colônias durante o processo de acumulação primitiva do capital, Marx recomendava: "Deve-se estudar esse assunto em detalhe para ver o que o burguês faz de si mesmo e do trabalhador onde pode à vontade modelar o mundo segundo sua imagem" (O Capital, Livro I, capítulo 24, nota 241).

Rosa Luxemburg, leitora atenta de Marx, dizia que a novidade da Primeira Guerra Mundial foi ter desencadeado em solo europeu e contra gente branca a mesma brutalidade que as potências imperialistas europeias usavam contra a gente de pele escura que vivia nas colônias. A própria Rosa Luxemburgo, mulher, judia, polonesa e esquerdista, viria a ser assassinada pelas milícias de extrema-direita em 1919.

À luz da distância histórica, sabemos hoje que o genocídio do povo Herero, praticado pelos alemães na Namíbia, foi a antecâmara das fábricas da morte instaladas na Polônia menos de quatro décadas depois, assim como sabemos que conceito de genocídio só foi criado quando a matança chegou às populações civilizadas da Europa. 
 
As diferenças entre centro e periferia modelam tanto a velocidade e intensidade dos processos quanto a maneira e o momento como eles são percebidos. Trata-se de uma lição da qual não podemos nos esquecer no Brasil, que se situa na periferia em relação às potências centrais, mas reproduz na sua estrutura de classes a relações de descompasso, complementaridade e espelhamento entre periferia e centro.

Os acontecimentos que levaram à eleição de Jair Bolsonaro pegaram de surpresa muita gente instruída, que mantinha uma fé ardente no "progresso". Não sei se é assim noutros lugares, mas no Brasil grassa o equívoco que identifica "ser de esquerda" e "ser progressista". Essa identificação da esquerda com o progresso, na esperança de opor-se assim aos conservadores e aos reacionários, sempre foi fonte de ilusões triunfalistas fatais. O restante está em Benjamin.

Diante das sucessivas derrotas institucionais do PT e das esquerdas desde 2016 e, sobretudo, com o resultado das eleições de 2018, a perplexidade se instalou de vez entre uma grande parcela dos grupos instruídos, basicamente pessoas brancas e das classes médias tradicionais (para diferenciá-las da "nova classe média" surgida no governo Lula). Eu ouvi colegas dizendo que não reconheciam mais o Brasil e que o "povo brasileiro", outrora tão bom, parecia ter sido desvirtuado pela manipulação da imprensa golpista ultraliberal, dos pastores evangélicos e dos ideólogos reacionários do Youtube.

É preciso lembrar que esse descalabro vem de antes e já era conhecido há muito pelos que vivem na periferia do sistema social e econômico. Podemos recuar até os povos indígenas da América, que conhecem o genocídio desde a virada do século XV para o XVI, podemos lembrar da atuação do Exército em Canudos ou podemos nos limitar ao passado recente das periferias urbanas.

Voltemos a 1992. Na América hispânica debatia-se o significado dos cinco séculos da chegada de Colombo e do desastre que se seguiu. No Brasil, que costuma ignorar ou menosprezar a América hispânica, estávamos preocupados em derrubar o presidente Fernando Collor. No dia 29 de setembro, milhões de brasileiros acompanharam, por rádio ou pela televisão, a votação da abertura do processo de impeachment, que resultou na renúncia de Collor em dezembro daquele ano.

Os estudantes "cara-pintadas" festejavam. As esquerdas (com raras e lúcidas exceções) se regozijavam. Alguns órgãos da imprensa internacional parabenizaram a jovem democracia brasileira por ter se livrado de um mau presidente de maneira "ordeira" e "progressista". O sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da pátria neste instante.

Todavia, três dias depois, chegam as notícias apavorantes do massacre ocorrido no Pavilhão 9 na Casa de Detenção do Carandiru, quando as forças policiais comandadas pelo coronel Ubiratan Guimarães trucidam 111 presos (o número oficial) com o consentimento do governador do Estado de São Paulo, Luis Antonio Fleury Filho, advogado que tinha feito carreira política no MDB, o partido que lutou pela redemocratização do Brasil. 

No ano seguinte, soubemos da chacina de meninos de rua na Candelária (julho de 1993) e do massacre de moradores da favela de Vigário Geral (agosto de 1993). Na época, o governador do Rio de Janeiro era Leonel Brizola, uma das mais proeminentes figuras da esquerda brasileira, o qual, ao tomar posse em 1983 em seu primeiro mandato à frente do governo fluminense, havia abolido a Secretaria de Segurança Pública do Estado. Essa iniciativa, que visava eliminar o nicho institucional dos esquadrões da morte dentro da polícia do Rio, fracassou visivelmente.

A imprensa "progressista" e as classes médias esclarecidas viam nessas chacinas e massacres lamentáveis resíduos da brutalidade herdada dos governos militares. Era o "entulho autoritário" que deveria ser removido com avanços institucionais e com a consolidação das conquistas da Constituição de 1988.  Com poucas exceções, a imprensa "progressista" e as classes médias esclarecidas  ignoravam ou não pareciam entender a mensagem que vinha das periferias, seja nas letras de "Sobrevivendo no Inferno" dos Racionais, seja no livro "Cidade de Deus", de Paulo Lins, ou de "Capão Pecado", de Ferréz, todos publicados entre 1997 e 2000.  E o que essas obras diziam? Que a violência não é episódica nem o resultado de deficiências institucionais ainda não resolvidas. A violência é sistêmica e permanente. Ela não se dá pela ausência do Estado. Ela é o próprio Estado no processo de produzir a periferia, assim como a sociedade de consumo produz depósitos de lixo. Ela é o fazer-se cotidiano e atual da sociedade racista de classes.

Enquanto isso, o coronel Ubiratan Guimarães entrou para a política e se tornou ícone da "bancada da bala" em São Paulo, com apoio dos órfãos de Jânio Quadros (com seu moralismo rasteiro) e dos apoiadores de Paulo Maluf (com seu cinismo e sua polícia assassina). No Rio, o governador Marcelo Alencar (PSDB), político cassado pelo AI 5 e que, após a anistia, fizera carreira ao lado de Brizola, nomeou como secretário de segurança pública o general Nilton Cerqueira, responsável pela caçada e morte de Lamarca e pela repressão à guerrilha do Araguaia. Tudo isso à sombra do êxito do Plano Real (1994) e do aplauso das classes médias, que usufruiam as benesses da paridade entre o real e o dólar no começo do governo de Fernando Henrique Cardoso, príncipe dos sociólogos brasileiros e exemplo da intelligentsia progressista da Universidade de São Paulo.

Enfim, o descalabro não começou em 2018. Nem mesmo os personagens são novos. Eles já estão lá em "Memórias Póstuma de Brás Cubas" (com a panaceia do emplastro, o liberal escravista Cotrim e o pseudofilósofo Quincas Borba), em "O Ateneu" (com o educador empresário oportunista Aristarco), em "Os Sertões" (com o exército brasileiro matando sertanejos), em "Triste Fim de Policarpo Quaresma" (com a exibição da incompetência e da brutalidade do Marechal Floriano Peixoto, considerado um "mito" pelos seus sequazes fardados), em "Vidas Secas" (com o pobre espezinhado pelo patrão e pela polícia) e em muitas outras obras que deveriam ser relidas contra o pano de fundo das relações sociais e históricas desta periferia que somos.

Somente assim veremos quanta razão tinham Gilberto Gil e Caetano Veloso quando, em 1993, referindo-se ao massacre do Carandiru e ao silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina de presos pobres e pretos, diziam que o "Haiti é aqui". Anos mais tarde, os militares brasileiros, depois de usar os tanques para botar ordem na gente pobre e preta do Haiti, iriam cogitar se não era possível fazer o mesmo no Brasil. Voltaram, então, a rosnar para as instituições como costumam fazer desde o final do Império. Logo passaram para as ações concretas e, no exemplo agora em curso, a equipe de farda e coturno que ocupou o território do Ministério da Saúde já bateu todas as metas de Canudos e espera alcançar, pelo menos em números, os feitos militares das grandes potências, como os obtidos em Hiroshima. 

O fato é que os personagens estão aí há muito tempo. Às vezes com outros nomes e roupas diferentes, às vezes já com o esgar de ódio tão conhecido nosso. Numa entrevista para a revista Veja, o ex-governador Fleury contou que, quando foi atacado pela imprensa e pelas entidades de direitos humanos por conta do massacre do Carandiru, houve apenas uma voz em Brasília que se ergueu para defendê-lo. Era um deputado federal chamado Jair Bolsonaro. O Haiti é aqui há muito tempo. 

Em tempo. No mês de fevereiro de 2001, o PCC (Primeiro Comando da Capital) organizou uma grande revolta que teve como epicentro a Casa de Detenção do Carandiru. O governo de São Paulo decidiu, então, desativar o presídio e demoli-lo. Nas semanas anteriores à demolição, o Carandiru serviu de cenário para que o diretor Hector Babenco realizasse seu filme com base no livro de Dráuzio Varela. Em seguida, o presídio foi aberto por alguns dias à visitação pública. Numa tarde de setembro, Ludmila e eu andamos pelos pátios e percorremos lentamente, filmando e fotografando, o Pavilhão 2, que tinha acabado de ser desocupado. Muitos dos pertences dos detentos ainda estavam lá, algumas celas ainda cheiravam a frituras e desodorantes baratos. Nos corredores, gambiarras elétricas e um forte odor de mijo com creolina, mofo e suor velho. A visitação ao Pavilhão 9, que ainda tinha as marcas de bala da chacina ocorrida dez anos antes, estava proibida. 



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