Lucidez, sagacidade e fé









Um ex-aluno me disse com extrema lucidez: "O que me angustia é não saber o que fazer para ser alguém que não conheço". Eu lhe respondi que ninguém é capaz de transformar-se em alguém diferente de si mesmo. Nós só podemos nos tornar aquilo que somos, isto é, aquilo que constitui a nossa potência, o conjunto de capacidades de nosso ser. Contudo, não sabemos quais são essas capacidades nem quando é o momento de exercê-las. Descobrir tudo isso não é fácil. Não se trata de fazer exame de consciência ou autoanálise. Não adianta ficar num canto se perguntando “quem sou eu afinal?”. Não é a leitura de livros de filosofia ou de literatura que vai nos revelar quem somos. É um erro achar que nossa vida vai ser salva pelas palavras ou pela Palavra. A descoberta é um processo prático e lento, feita na carne e na seiva da vida. Acontece na interação e no atrito com os outros, nas experiências de êxito e de fracasso nas tarefas e projetos que assumimos. Enfim, o caminho é empírico, doloroso e não está totalmente sob nosso controle.

Para evitar esse tatear às cegas, muita gente aceita um projeto de vida já pronto. Um projeto de vida imposto pela família, pelas expectativas da classe social, pelas fantasias pessoais de sucesso, amor, riqueza e prestígio. Essas pessoas parecem saber o que são, o que querem e aonde vão chegar. Elas são capazes de viver sem fazer certas perguntas e se mostram extremamente hábeis em driblar tudo o que pode abalar o sentido de sua vidas ou carreiras. Sua sagacidade está em fugir de tudo o que é opaco, escuro e incerto, recorrendo aos mais diversos meios. Alguns deles são os opiáceos de sempre (os fanatismos teológico-políticos, as autoindulgências ou o próprio ópio...), outros são mais surpreendentes, pois desconfio que muito do sucesso atual e recente do budismo de classe média e dos cafés filosóficos vêm justamente de oferecerem um blá-blá-blá convincente que sagazmente deixa intocado a experiência viva com o mundo das sombras.

Acontece que esse confronto com a sombra e a treva é inevitável. Os seres humanos não são entidades de luz. São animais retorcidos que carregam desejos intensos e conflitantes, incertezas, medos e frustrações. Para agravar, sofremos de hipermetropia em relação aquilo que está mais perto: a nossa própria vida. E cultivamos fantasias exageradíssimas a respeito da nossa grandeza e dos nossos méritos. 

Tenho muitas dúvidas se podemos alcançar a felicidade ou o contentamento. Acredito, porém, que somos capazes de chegar à lucidez. A lucidez começa no momento em que tomamos distância das fantasias de onipotência e reconhecemos a falibilidade das nossas próprias avaliações e das avaliações feitas pelos outros. Consiste em admitir que somos criaturas pobremente opinativas e que nossas opiniões teimam em se vestirem como verdade ou como revelação.

Ser lúcido é aceitar que o que somos a cada momento é o resultado de uma complexa interação entre os nossos esforços e as condições externas alheias à nossa vontade. É verdade que não somos apenas e não somos sempre os títeres de forças determinísticas, mas estamos muito longe de ser Napoleões que dominam o mundo montados na firmeza de propósito. Quando ganhamos ou quando perdemos, há sempre uma parcela indeterminável e incontornável de mero acaso, o que deveria nos prevenir seja do orgulho ridiculamente confiante no próprio mérito, seja da humilhação que paralisa a vontade de lutar mais uma vez.

A lucidez é, portanto, a atitude existencial que se opõe à sagacidade dos que se desviam das perguntas incômodas. Acredito, porém, que a lucidez também se opõe à atitude dos quem enfrenta as perguntas incômodas, apelando para a fé. A meu ver, a lucidez e a fé são caminhos inconciliáveis, mas deixo o assunto para uma outra ocasião.



Comentários