Aos exilados em Cambridge
Para Léo e Júlia
"Ogni collasso porta
con sé disordine intellettuale e morale. Bisogna creare gente sobria, paziente,
che non disperi dinanzi ai peggiori orrori e non si esalti a ogni sciocchezza.
Pessimismo dell'intelligenza, ottimismo della volontà".
Antonio Gramsci
Finalmente recebi notícias de meus amigos exilados em Cambridge. No silêncio dos dias tensos anteriores, eu os imaginei escapando de Paris antes do nascer do sol, enquanto os cartazes da quarentena iam sendo afixados na entrada do metrô. O tumulto na Gare du Nord para pegar o último comboio até Calais, onde os mais afortunados esperavam os barcos que iriam resgatá-las do continente infectado. As longas filas na praia, a difícil travessia do Canal, os paredões brancos de Dover despontando no horizonte. Depois mais uma espera e outro trem e outra espera e outro trem até que, enfim, o email me trouxe as boas novas e o alívio. Está tudo bem. Eles estão juntos e bem, embora cansados. E não apenas da viagem e do tumulto de vozes e de notícias. Então fiquei preocupado novamente porque desânimo dos bons sempre me dói. Por isso resolvi mandar-lhes esta carta.
Está uma beleza este começo de outono em São Paulo. Uma sucessão de dias de muita claridade, céu azul, ar limpo devido à redução brusca de veículos. Noites frescas que se seguem a crepúsculos de cores lindas. Aqui do 11º primeiro andar, dá para ver a Praça do Relógio na Cidade Universitária e muito mais, apesar dos prédios que estão sendo construídos. Hoje Ludmila comprou pães e cestas de alimentos orgânicos, que receberemos semanalmente. Estou com um enorme estoque de livros interessantes, que eu sempre quis ler mas não tinha tempo. Também tenho muitos filmes em dvd em blue-ray para assistir. Alguns ainda com caixas lacradas. Meu filho está muito bem, já entrando no oitavo dia de isolamento. Ou ele não contraiu o coronavírus ou é um desses casos de portador assintomático. Em todo caso, por precaução, vai continuar isolado por mais uns dez dias. Minha filha tem gravado aulas de inglês para as crianças de sua escola. Tudo isso é para dizer que está tudo bem. Nós somos privilegiados do ponto de vista social, econômico e afetivo. Tudo o que tem acontecido no mundo até agora só resultou em mudanças de hábitos, sem nenhum sofrimento pessoal. No máximo, algum tédio por não podermos sair para aproveitar o dia bonito.
Contudo, ao mesmo tempo, eu convivo com outro tipo de experiência. Tenho quase 53 anos e começo a ter lembranças do mundo a partir de 1970, quando eu tinha 3 anos. Portanto, já tenho meio século de memória acumulada. Eu via no Jornal Nacional as notícias da guerra do Vietnã quando era pequeno, eu me lembro do escândalo de Watergate e da renúncia de Nixon, da crise mundial do petróleo que colocou o mundo em pânico. Em me lembro dos pronunciamentos feito pelo "Excelentíssimo Senhor Presidente da República General Emílio Garrastazu Médici", que ora aparecia de farda com medalhas, ora de terno preto. Eu me lembro dos atentados na Olimpíada da Munique. Eu tinha oito anos quando Vladimir Herzog foi torturado e morto. Eu me lembro de quando a Europa voltava ao notíciário por causa dos atentados feitos por grupos de extrema-esquerda como o Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas e de extrema-direita. Eu me lembro do suicídio coletivo da seita de Jim Jones. Eu me lembro da ascensão dos fundamentalismos islâmicos a partir da Revolução Iraniana. Eu me lembro do atentado assassino na estação ferroviária de Bolonha. Eu me lembro da explosão das bombas no Riocentro, da ascensão do neoliberalismo com Thatcher e com Reagan, dos primeiros empresários e economistas brasileiros defendendo a redução do Estado num país que mal e mal dava alguma assistência para a classe trabalhadora urbana. Eu me lembro da Guerra Irã-Iraque. Eu me lembro do massacre dos refugiados palestinos em Sabra-Chatila, do voo da Korean Airlines que foi abatido por jatos soviéticos (269 mortes) e quase levou o planeta à uma guerra mundial em setembro de 1983. Eu me lembro da derrota da emenda Dante de Oliveira, que pedia eleições diretas para presidente já em 1985. Eu me lembro do cinismo corrupto de Paulo Maluf e da idolatria que ele despertava com o seu "rouba, mas faz" e sua polícia assassina. Eu me lembro da fome na Etiópia. Lembro-me do terrível incêndio da favela de Vila Socó, do vazamento de gás venenoso na Union Carbide em Bhopal, de Chernobyl, do gigantesco derramamento do petroleiro Exxon Valdez. Lembro-me do buraco na camada de ozônio. Lembro do massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial, do massacre de crianças na Candelária, do massacre de Vigário Geral, do Carandiru e do apoio sorridente com que esses massacres foram recebidos. Vi a guerra do Kwait. Vi a operação desastrosa feita na Somália. Vivi os anos de hiperinflação, da década perdida dos anos 80. Vi a manipulação que permitiu a eleição de Fernando Collor de Mello e os atos desastrosos de seu governo. Vi o cerco e a morte dos fanáticos em Waco. Vi a ascensão da extrema direita norte-americana, evangélica, moralista, farisaica até o último grau, boquirrota, sedenta por atenção na mídia (Newt Gingrich). Vi o atentado que explodiu o hospital em Oklahoma. Eu me lembro quando Olavo de Carvalho começou a atacar a universidade. Eu me lembro do tiroteio em Columbine e de muitos outros tiroteios em escolas fora e dentro do Brasil. Eu me lembro da eleição fraudulenta de George W. Bush. Eu me lembro de cada minuto do 11 de setembro de 2001 e acompanhei com a atenção a sanha da direita belicistas nos Estados Unidos. A tensão às vésperas do início do bombardeio de Bagdá. O assassinato de Celso Daniel. As veleidades populistas de Lula que, ao sentir-se cada vez mais estrela (ele era a estrela do PT), ia abafando a possibilidade de surgirem novas lideranças de esquerda. Eu me lembro do artigo de Paul Krugman alertando para uma possível crise dos subprimes. Eu passei pela epidemia de meningite de 1975-1976, pelo pandemia de Aids, pela Sars, pelo H1N1. Vi a epidemia de Ebola na África e aqui no Brasil, a dengue, a zika e o chinkungunya causando microcefalia em bebês de mães pobres. Vi o terrorismo islâmico voltar com força pelas mãos da Al-Qaeda e do ISIS. Vi cidades que eu amo serem marcadas pela brutalidade assassina das bombas, dos tiros e do medo subsequentes. Vi a minha cidade natal sendo entregue a homens como Paulo Maluf, Celso Pitta e João Dória. Vi a derrubada da primeira mulher a ser presidente do Brasil e ouvi os discursos infames e canalhas feitos pelos parlamentares que a afastaram do cargo. Vi o desastre humano e ambiental de Mariana e o de Brumadinho, depois de ter visto inúmeros desabamentos e mortes em áreas de risco em todo Brasil. Vi a ascensão de um juiz oportunista, medíocre, provinciano e teleguiado pelo governo norte-americano. Vi a eleição de um escroque midiático como presidente dos Estados Unidos. Vi a prisão do maior líder popular e populista brasileiro. Vi a morte de Marielle Franco e a alegria com que o nome dela foi espezinhado na campanha eleitoral. Vi a eleição de uma criatura inominável como presidente de meu país. Vi florestas ardendo na Europa, na Califórnia, na Austrália e na Amazônia, enquanto enormes ilhas de plástico boiam nos oceanos de óleo e esgoto. Vi o voo da Ukraine Airlines ser abatido pelo Irã (176 mortes) e quase colocar o mundo na rota de outra guerra. Vejo agora uma nova crise econômica, política e social que será, no mínimo tão grave quanto outras que eu já vi. Vejo todos os dias a inoperância patética de Macron, Johnson, Trump e tantos outros supostos líderes. Durante a minha existência, o fim do mundo foi anunciado várias vezes. Alguns previam um colapso ambiental ou energético. Outros previam uma terceira guerra mundial que levaria ao holocausto nuclear e ao inverno atômico. Achava-se que o mundo não chegaria ao final do século XX. Dizia-se que o bug do milênio em 2000 iria destruir o sistema financeiro e as redes de comunicação, com efeitos catastróficos e imprevisíveis. Um suposto "código da Bíblia" dizia que o mundo acabaria em 2006, o calendário maia, em 2012...
Essa longa lista, que está longe de ser exaustiva, é apenas para deixar claro que tudo o que vi neste meio século não me faz dar pulos de felicidade. Como vocês, eu me apego à beleza que virá da poesia e da arte. Mas assim como vocês, eu sou de esquerda. Quem é de esquerda não pode ser pessimista quanto à espécie humana. Quem é de esquerda, precisa trabalhar por um mundo melhor e por dias melhores para toda a humanidade. Gramsci, que passou por coisas muito mais terríveis do que nós, dizia que era preciso conciliar o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade. A única maneira de seguir esse conselho é - parece-me - estar consciente de que não estamos num abismo ou num fundo de poço, mas num hiato. Um hiato entre este agora, cheio de sombras mas também cheio de vida, e um futuro incerto porque aberto a muitas possibilidades, inclusive a de que o pior aconteça.... É nesse espaço que temos que pensar, agir, sentir e tomar nossas decisões. Estou bem agora porque as pessoas que eu amo estão bem. Estou bem porque o presente me traz beleza (um dia lindo que vejo pela janela enquanto, numa sacada, um vizinho toca Villa-Lobos na clarineta). Estou bem porque Géricault soube transformar o desespero dos náufragos do Medusa em alto momento da arte. Estou bem porque Keats e Shelley extraíam beleza da agitação febril e sofrida de vidas tão efêmeras: “Fade far away, dissolve, and quite forget / What thou among the leaves hast never known/ The weariness, the fever, and the fret/ Here, where men sit and hear each other groan”.
No entanto, por maior que seja o poder da beleza, sinto que não tenho o direito de ficar na dimensão estética da vida ou limitado às alegrias de uma vida até agora bem protegida. Não posso viver da fruição da beleza nem ficar recluso num bunker acolchoado. Eu sou professor há trinta anos. Minha vida consiste em dirigir minhas palavras a pessoas jovens. Eu preciso lhes passar um pouco de lucidez, de cautela perante a vida, de consciência da imperfeição humana, mas também da dignidade humana. No seu livro Aurora, Nietzsche, que estava longe de ser um otimista, colocou uma epígrafe tirada do Rig-Veda: "Há tantas auroras que não brilharam ainda".
Que o nosso otimismo seja matizado, contraditório e até sombrio, mas que não desista da humanidade. As consequências morais de desistirmos da humanidade são terríveis.
Pensemos assim. Se der tudo certo, depois dessa idade das trevas virá o Renascimento. Se der tudo errado, restarão no planeta apenas as baratas, os escorpiões e um punhado de bolsonaristas procurando a beirada da terra plana. Neste caso, torçamos para que as baratas e escorpiões aguentem melhor do que nós a companhia dessa parcela tão deserdada do gênero humano.
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foto: "Wolves are coming", obra do artista chinês Liu Rowang instalada na Piazza Municipio, Nápoles.
epígrafe: Antonio Gramsci, Quaderni del Carcere, caderno 1 (1929-1930), volume 1, Einaudi, Turim, 2007
Eu não ligo para nenhum dos nomes de deus. Mas agradeço a alguma coisa, provavelmente ao acaso e à sua pessoal de decisão, por continuar o/um blog. Quase 53... Há quase 20 eu era seu aluno.
ResponderExcluirPenso igual, as palavras não salvam, nem matam; não são sujeitos. Mas aqui, pelo menos, é um lugar para vê-las organizadas de uma forma bonita até que o sujeito tenha coragem de morrer.