Qual é a voz de Deus?
Padres, pastores, publicitários e populistas gostam de repetir, nem sempre com cinismo, que a voz do povo é a voz de Deus. Como sói acontecer com outras que se tornaram proverbiais, a máxima “vox populi, vox dei” é recorrente e versátil na mesma proporção em que seu sentido é frouxo e dúctil. Senão vejamos.
Há os que acreditam que séculos de lutas e sofrimento imprimiram no povo, isto é, na multidão de oprimidos, um senso de realidade distante das frivolidades com que se divertem as classes que vivem na fartura. Quando a gente sofredora do povo fala, é a verdade que está falando porque os oprimidos não mentem. A voz do povo é a voz de Deus.
Há os que acreditam que o povo, isto é, a gente simples enraizada nos rincões mal tocados pela modernidade, tem uma compreensão mais ampla e mais pura do mundo, muito mais profunda do que as especulações dos acadêmicos. Quando a gente simples do povo fala, o que se desvela é a essência das coisas. A voz do povo é a voz de Deus.
Há os que acreditam que quando o povo, isto é, as massas ou as maiorias, tem essa ou aquela opinião ou repete esse ou aquele boato, tais opiniões ou boatos não podem estar totalmente errados. Tantas pessoas não poderiam estar enganadas ao mesmo tempo. Tantas pessoas não agiriam de má fé. A voz do povo é a voz de Deus.
Há os que acreditam que o povo, isto é, os habitantes de um certo território, conhecem as necessidades e os problemas de viver ali. Por isso quando o povo se manifesta, seja pelo voto, seja pelo murmúrio ressentido, seja por protesto, é a verdade dessas necessidades e problemas que vêm à luz. A voz do povo é a voz de Deus.
Há os que acreditam que o povo, isto é, aquele conjunto de seres humanos dotados de peculiaridades que decorrem de uma Histórica compartilhada ou de profundos vínculos de raça e sangue, é dotado de uma vontade una e indivisa. A voz do povo é a voz de Deus.
“Povo” é uma palavra fácil demais e serve a muitos senhores. O povo são “os oprimidos”, o povo é a “gente boa e simples”, o povo é a “massa”, o povo é a “população”, povo é a “etnia”, a “raça” ou a “cultura”. Todos com sua voz, que se alega divina. Mas qual seria o som dessa voz? Como é Deus quando fala?
Vamos ouvi-lo conversando com seus dois maiores profetas, Moisés e Elias.
Ao amanhecer desde cedo, houve trovões, relâmpagos e uma espessa nuvem sobre a montanha, e um clangor muito forte de trombeta; e o povo que estava no acampamento pôs-se a tremer. Moisés fez o povo sair do acampamento ao encontro de Deus, e puseram-se ao pé da montanha. Toda a montanha do Sinai fumegava, porque Iahweh descera sobre ela no fogo; a sua fumaça subiu como a fumaça de uma fornalha, e toda a montanha tremia violentamente. O som da trombeta ia aumentando pouco a pouco; Moisés falava e Deus lhe respondia no trovão. (Êxodo 19, 16-19)
Isso é o que se espera de uma teofania, de uma manifestação de Deus: trovões, relâmpagos, clangor de trombetas, terremoto. Mas todo esse ruído pode ser muito enganoso. Uma teofania pode ser muito mais sutil.
Um grande e impetuoso furacão fendia as montanhas e quebrava os rochedos, mas Iahweh não estava no furacão; e depois do furacão houve um terremoto, mas Iahweh não estava no terremoto. E depois do terremoto um fogo, mas Iahweh não estava no fogo; e depois do fogo, o ruído de uma leve brisa. Quando Elias o ouviu, cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta. Então veio-lhe uma voz, que disse: “Que fazes aqui, Elias?” (Reis I 19, 11-13)
Mesmo quando fala com seus escolhidos no Sinai, Deus modula sua voz de diferentes maneiras, ora como estrondo, ora como sussurro, pelo que devemos cuidar para não nos precipitarmos e achar que o raio, o trovão, o furacão e o terremoto são a voz de Deus.
Então como podemos nós, que não estamos à altura de Moisés nem de Elias, saber qual é a voz de Deus? Essa questão veio à tona muitas vezes. Na época da Reforma, Lutero dizia que a voz de Deus é raio e trovão: ela clareia, fulmina e ressoa forte. Ela é inconfundível. Já Erasmo de Rotterdam considerava que Deus balbucia suas mensagens, as quais requerem, de nossa parte, um grande esforço de decifração e interpretação. Lutero queria despertar o entusiasmo, afastar os frouxos e tíbios, estabelecer linhas claras de divisão entre os verdadeiros crentes e os desencaminhados. Erasmo sugeria a prudência, o lento e cuidadoso trabalho de exegese, o cuidado de manter o diálogo aberto no âmbito da divergência e a divergência no âmbito do diálogo. Estrondo ou sussurro. Lutero ou Erasmo. Essa escolha nunca foi isenta de consequências.
Nas sociedades laicas modernas, é muito tentador dizer que o debate sobre a voz de Deus perdeu sentido, já que Deus teria morrido ou porque Ele jamais teria existido. No entanto, a questão se deslocou para outros âmbitos. Para muitos, a História, a Natureza e a Ciência assumiram o papel de sucedâneos da voz de Deus. Por isso podemos perguntar se os sucedâneos de Deus falam com estrondo ou com sussurro. A História se manifesta em eventos espetaculares que não deixam dúvida sobre a crise decisiva e final em que estamos imersos? Ou a História se manifesta em sutis sinais dos tempos, que requerem o esforço de exegese e prudência nas conclusões? Eventos espetaculares como a série de incêndios na Europa, na Califórnia, na Amazônia e na Austrália são o estrondo da voz da Natureza? Ou a Natureza fala de maneira mais sutil, nas medições feitas pela ciência e nas suas tentativas de prever os cenários futuros de mudança climática? E a Ciência? Ela fala de maneira espetacular e inconfundível pelos seus êxitos e conquistas? Ou ela é antes o esforço metódico de construir, à luz dos dados existentes, modestos modelos de explicação e previsão?
Seria cômodo dizer que, assim como Deus, a História, a Natureza e a Ciência podem modular sua voz, de modo a ressoar ora como trovão ora como brisa. Mas quando saberemos se a mensagem vem no estrondo ou na sussurro? Quando estamos autorizados a dizer que o trovão, o relâmpago, o terremoto e o furacão são apenas ruídos e não sinais? Não sendo profetas como Elias, como podemos afastar o que se parece ser tão evidente? O que devemos considerar sinais e evidências?
Parece que o melhor seria a cautela e a prudência, mas podemos perder tempo adotando precauções céticas diante do que se manifesta como cataclisma climático global? Ou quanto ao que se manifesta como a marcha da insensatez na vida política e social brasileira e estrangeira? Essas questões não exercícios mentais como aqueles que são propostos em certos meios acadêmicos. Essas questões envolvem decisões a serem tomadas com urgência. Nesse sentido, a Ciência, a Natureza e a História nos solicitam com a imperiosidade de Deus, porém como podemos saber se a voz de Deus está no estrondo ou no sussurro? A necessidade de tomar decisões urgentes não pode ocultar a incerteza fundamental dessa tomada de decisões. Para que não sejam deliberações cegas, elas devem ser entendidas como apostas em que avaliamos as vantagens e as desvantagens das ações a serem tomadas. No entanto, essa solução razoável e mundana não resolve o dilema a respeito de aceitar ou não algo como evidência ou sinal.
Confesso que, toda vez que topo com dilemas como esse, eu me pergunto: será que estou diante de uma contradição intrínseca da realidade? Será que esse dilema é apenas o impasse criado por questões mal formuladas ou equivocadas? Ou será que o dilema é tão somente uma evidência de que minha capacidade de pensar esbarrou em seus limites?
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foto: Andrea Branzi, Dolmen (2014), Centre George Pompidou
foto: Andrea Branzi, Dolmen (2014), Centre George Pompidou
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