Resposta a um jovem






Você me dizia que os rappers da periferia que protestam contra a exclusão social, produzida pelo mundo capitalista, ao mesmo tempo querem se afirmar usando roupas de marca, produzidas por esse mesmo mundo capitalista. Não seria contraditório – perguntou você - os excluídos quererem fazer parte da ordem social que alimenta a sua exclusão?


Concordo que há um paradoxo aí, mas ele não pode ser atribuído à imaturidade ou inconsciência dos rappers. O jovem pobre, de origem negra, que vive na periferia e é visto com suspeita pela polícia, naturalmente quer sair da situação de exclusão, mas há poucos caminhos para realizar esse desejo.


Um deles é entrar no circuito do crime. Fazer parte de redes criminosas, sejam bandos locais ou grandes organizações como o PCC, dá "moral" na periferia. Quem se assume como marginal usando a violência é respeitado, admirado ou temido e desfruta dessa superioridade. Contudo, esse caminho tem riscos bem conhecidos e moralmente inaceitáveis para a maioria dos jovens de periferia.


Outro caminho é buscar a ascensão social dentro do circuito "trabalho-dinheiro-consumo". Trabalhar para ganhar o sustento é um imperativo moral para os pobres e remediados desde a Antiguidade. Ter êxito e reconhecimento no desempenho da profissão é uma forma prestigiada de inserção social. Ganhar muito dinheiro em consequência disso e tornar-se um consumidor exigente e consciente de seus direitos são sinais de sucesso e superioridade.


Não devemos ser apressados na condenação do consumo. Uma certa crítica cultural de esquerda gosta de adotar o partido do ascetismo e condenar a gula consumista e a alienação promovida pela publicidade, como se o advento do capitalismo industrial e da sociedade de massas tivessem destruído um idílico mundo de bons selvagens na Europa e alhures. A realidade histórica e sociológica é mais matizada: o consumo é uma das maneiras pelas quais se constroem identidades socialmente válidas. Para os que podem ser consumidores, existem opções caras ou baratas, excêntricas ou clássicas, suntuárias ou discretas, eruditas ou populares. Quem vive na pobreza, sem dinheiro para consumir, não tem condições de construir uma dessa identidades. Para um jovem da periferia, como para a maioria das pessoas nas sociedades atuais, a roupa e o tênis são maneiras de construir e expressar uma identidade, valorizando-se do ponto de vista estético e até existencial. O contrário de disso seria ter de resignar-se às privações e humilhações de uma vida de pobreza anônima.


Assim, não é estranho que entrar no circuito "trabalho-dinheiro-consumo" seja desejo da maioria dos jovens de periferia, assim como é para a maioria dos jovens de classe média.  Esse circuito constitui a norma social, o caminho reto do direito em relação ao qual se opõem os desvios tortuosos e ilícitos do enriquecimento pela violência ou pela corrupção. Quem adere ao "trabalho-dinheiro-consumo" ingressa na comunidade dos "cidadãos de bem".


Muitos desses "cidadãos de bem" são pessoas mansas e gentis, mas bastante intransigentes na defesa da norma social, razão pela qual exigem punições bíblicas para os corruptos, os assaltantes, os estupradores e os pedófilos. As feições e as palavras desses "cidadãos de bem" adquirem uma aspereza desagradável nesses momentos, mas temos que admitir que não há nada errado em querer proteger o dinheiro público, a propriedade privada adquirida com esforço e a segurança da família. É por isso que, ao invés de perder tempo com críticas aos "cidadãos de bem", deveríamos examinar com atenção a natureza das normas sociais que eles defendem.


As normas sociais não são princípios éticos puros e cristalinos, apesar do que os cidadãos de bem pensem a respeito. Elas são combinações complexas de imperativos morais bastante consensuais e obediência às instâncias de poder. Essa obediência cuja longa história mergulha no passado patriarcal e escravista deixou vestígios persistentes nas normas sociais. Por isso, muitos "cidadãos de bem" apoiam, de maneira ruidosa ou tácita, a segregação daqueles que ficaram à margem da sociedade de consumo.


Por fim, há um terceiro caminho, que é lutar para abolir a exclusão. Esse é o caminho com menos seguidores justamente porque se trata de sustentar uma luta coletiva de longo prazo, cujos resultados dependem de outras lutas, em escala nacional e internacional. Para se engajar não basta sentir empatia com os excluídos, é necessário também esforçar-se para ver o horizonte mais amplo, pois:


(a) é preciso combater a desigualdade;


(b) é preciso defender as liberdades individuais;


(c) é preciso defender e aprimorar as formas democráticas e transparentes de governo e administração dos recursos;


(d) é preciso preservar o meio ambiente;



(e) é preciso promover bem-estar e desenvolvimento no plano individual e coletivo, protegendo grupos ameaçados e socialmente fragilizados;


(f) é preciso lutar contra a ignorância e o obscurantismo, promovendo a educação, a cultura e a pesquisa;


(g) é preciso impor regras ao mercado.


Aqui chegamos à sua segunda questão. Você me perguntou se o contraste entre direita e esquerda não estaria na escolha da liberdade (com sacrifício da igualdade) ou da igualdade (com o sacrifício da liberdade). Embora esse contraste seja endossado por muitos representantes da direita e da esquerda, acredito que é uma visão unilateral que se apoia em meias-verdades. 


Não se trata de escolher entre a igualdade e a liberdade, como se fossem causas dissociadas e antagônicas. O resultado da liberdade sem igualdade e da igualdade sem liberdade só pode ser catastrófico. Os comunistas do século XX desprezavam as garantias constitucionais de liberdade individual, consideradas expressão do poder burguês que deveria ser suprimido pela uma ditadura do proletariado. Quando tomaram o poder na Rússia, na China e em muitos outros países, eles conseguiram diminuir as desigualdades, mas ao preço de imensos sofrimentos coletivos e numerosos efeitos negativos: o surgimento de uma casta de dirigentes burocráticos que se perpetuava  no exercício do poder ditatorial, a destruição do meio ambiente, os campos de trabalho para punir os dissidentes, a instrumentalização política da educação, da cultura e da pesquisa a serviço dos dirigentes do partido.


O quadro foi pavoroso, porém a queda do muro de Berlim e o colapso do bloco soviético foram usados, de maneira abusiva, como argumento em favor da posição contrária, a dos conservadores e neoliberais para os quais a liberdade individual é o bem supremo.


Os autodenominados "libertarians" partem de uma oposição bastante simples entre o indivíduo e a sociedade, entre o individual e o coletivo. Alguns chegam mesmo a dizer a sociedade não existe; existem apenas indivíduos. De acordo com essa visão, os indivíduos concorrem entre si para alcançar seus objetivos. Essa competição estimularia a criatividade e o surgimento de novas ideias e soluções, com resultados benéficos para todos.


Todavia o delicado equilíbrio desse processo seria perturbado pelas intromissões do Estado, das organizações internacionais ou das instituições coletivas como os sindicatos. Para os conservadores e neoliberais, ser livre é usar livremente suas habilidades e competências num sistema de livre mercado. Somente o livre mercado seria capaz de distribuir os recursos de acordo com o desempenho de cada um, de maneira justa e equilibrada. No livre mercado,  a autonomia do indivíduo finalmente se realizaria pois cada um seria o único responsável por si mesmo, pelo seu sucesso ou fracasso. O livre mercado promete o reino de abundância, desde que o Estado, as organizações internacionais e as instituições coletivas não criem ruído, ao impor sistemas de “cotas” para minorias, regulação do sistema financeiro, proteção ambiental, orçamentos participativos, sistemas de bem-estar social no campo da saúde, educação e previdência. Tudo isso é "comunismo" ou "socialismo" para os conservadores e neoliberais. 


No entanto, qual seria a diferença entre essa concorrência sem restrições e uma partida de futebol ou de xadrez em que não houvesse regras pré-definidas e aceitas coletivamente? Dizer que o desempenho dos indivíduos é otimizado no regime de livre mercado não seria o mesmo que dizer que o desempenho de um futebolista ou de um enxadrista é melhor quando não há regras no futebol ou no xadrez? Isso não é destruir o próprio jogo ao invés de otimizar o desempenho dos participantes? O resultado de tal jogo seria melhor descrito como caos do que como equilíbrio. É verdade que a competição traz benefícios, mas é preciso haver regras e restrições que a enquadrem, assim como estruturas que incentivem a cooperação e não apenas a concorrência.


Então, meu conselho é: não entre nessa história de liberdade e igualdade se excluem. São os admiradores de Stalin, de um lado, e os "libertarians", de outro lado, que espalharam essa balela. É preciso lutar pela liberdade, pela igualdade, pelo meio ambiente, pela transparência democrática e por todos os itens que mencionei antes. 


Qualquer que seja a nossa posição política, não podemos alimentar a ilusão de que a História ou o Mercado estejam de nosso lado, de que o tribunal da História  ou sucesso do Mercado possam justificar nossas ações e nos redimir. Precisamos ser cautelosos com essas e outras formas de providência divina. Veja o que eu escrevi neste blog sobre “As mãos do rei da Assíria”.


Enfim, as tarefas são enormes, complexas e sem sucesso garantido. Sabendo disso, temos o direito ao desânimo e ao pessimismo. O que não podemos é cair no jogo fácil de achar que a solução está na mera abolição das desigualdades sociais ou na liberdade irrestrita de mercado.


um grande abraço,


V.


P.S.: Há cinco anos minha filha fotografou uma ocupação de protesto na Plaza de Mayo, em Buenos Aires. Os tempos eram duros. Continuam sendo.




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