Carta a um amigo
Meu amigo,
Você é uma dessas ausências que eu lamento quase todos os dias.
Há muitas pessoas agudas e inteligentes por aí, mas lhes falta o cultivo espiritual que vejo em você: aquela maceração íntima de quem pensa e, ao pensar, repassa e repisa muitas dores, tanto as próprias quanto as do mundo.
Isso nunca vou deixar de admirar em você: esse pessimismo profundo que talvez ainda confie que, no fundo de algum poço, exista um reservatório de natureza humana não corrompida. Um pessimismo que ainda não renunciou ao Emílio rousseauniano. Posso estar muito enganado, mas a dor que vejo em você é a do homem bom que acredita que os seres humanos poderiam vir a ser bons se as condições fossem diferentes.
Nossos encontros, mesmo os mais curtos e inesperados, são sempre esclarecedores para mim. No fundo amplo e geral dos valores éticos e políticos que comungamos, as nossas divergências me fazem entender melhor o que eu penso e o que sou. Por isso, vou aproveitar o ensejo para dizer o que pensei depois de nosso breve diálogo junto aos legumes do supermercado.
Diante do seu pessimismo, eu costumo ser o otimista esperançoso. No entanto, meu otimismo é apenas o de um cético a respeito da possibilidade de prever o futuro. Meu otimismo é simples: olhando o caminho percorrido até agora, constato que ainda não chegamos aos fornos crematórios. Será que chegaremos a esse ponto? A possibilidade existe, assim como é possível que as desgraças ganhem formas inesperadas, ou que não venham absolutamente. Eu aposto na incerteza e na contingência absoluta. Não sabemos o que resultará do lance de dados. Sabemos apenas que ele não abolirá o acaso.
Dito isto, nós dois concordamos que o quadro atual é gravíssimo. Todavia, como ainda não estamos mortos, temos escolhas a fazer. Eu acredito que ser professor faz sentido. Acredito que ser ético faz sentido, que pensar faz sentido, que amar as artes faz sentido, que buscar o conhecimento faz sentido. Acredito que concordamos nisso tudo.
De resto, duas observações rápidas.
(1) Você falou em exílio. Onde é possível exilar-se hoje? Já começaram a vender passagens para as luas de Júpiter?
(2) Eu disse que o bolsonarismo não é uma novidade. Não era minha intenção normalizar a excrescência Bolsonaro. O que eu deveria ter dito é que certas formas de autoritarismo são inerentes a certas sociedades. O fascismo e o nazismo não foram acidentes na vida histórica e social dos italianos e dos alemães. Trump não é um mero resfriado da democracia americana que, de repente, teria ficado doente. O mesmo acontece com o bolsonarismo.
Essa gente sempre esteve ao nosso lado, como parentes, vizinhos, colegas de trabalho. Eles não são apenas arcaísmos e formas fossilizadas de estruturas sociais mais antigas. Eles são a nossa atualidade há muito tempo. Pense nestes personagens: Major Vidigal, Brás Cubas, Cotrim, Bentinho, João Romão, Luís da Silva, Paulo Honório e Odorico Paraguaçu. Em quem eles teriam votado para presidente em 2018?
O problema vai mais longe. Eu desconfio que o Leonardinho, o Prudêncio e o Lalino Salãthiel também teriam votado no Bolsonaro, do mesmo modo que o capitão do mato de "Pai contra Mãe". Pelos mapas eleitorais, boa parte da população das comunidades pobres do Rio e de São Paulo votou em Bolsonaro, Bolsodória e Bolsowitzel. Será que se trata de um sarampão fascista repentino? Eu duvido.
O massacre recente em Paraisópolis é menos um sintoma do Brasil de Bolsonaro do que de uma patologia social crônica, que tem seus antecedentes na atuação da Rota no tempo de Maluf, no massacre do Carandiru, nos massacres da Candelária e de Vigário Geral, na violência endêmica no campo. O Brasil das queimadas, da matança de índios, da crueldade para com os pobres é parte constitutiva e profunda da nossa História, da qual faz parte também o consentimento de amplas porções das camadas mais baixas da população, seja obtido por manipulação, seja resultado da bestialização das massas passivas, seja de um desejo de identificação ativo e ruidoso com os vencedores.
Aquele Brasil que queríamos deixar para trás nos nossos sonhos progressistas e emancipatórios agora bate à nossa porta, fazendo estardalhaço. Temos que aprender a lidar com isso. É urgente aprender a lidar com isso.
Chega. Falei demais. Agradeço muito que existam no Brasil pessoas como você. Por favor, não deixe este país.
um grande abraço deste seu semelhante e irmão,
apenas mais um hipócrita leitor de Baudelaire
V.
Obrigado pela atenta reflexão
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