Häftling 174.517
1.
Não
procure no dicionário: Häftling significa prisioneiro.
No campo
de trabalhos forçados de Buna-Monowitz, vizinho a Auschwitz, o Häftling 174.517
era um jovem químico italiano de família judia. Primo Levi tinha 24 anos, pouca
noção das coisas e nenhuma experiência de combate quando decidiu lutar na
resistência italiana. Foi capturado pela milícia fascista no final de 1943 e
deportado para a Polônia. Vários acasos e golpes de sorte permitiram que ele
sobrevivesse até que o Exército Vermelho libertasse o campo em janeiro
de 1945. Primo Levi empreendeu, então, uma complicada viagem de volta para
casa. Os meses como prisioneiro e a odisseia rumo a Turim foram narrados por
ele em É isto um homem? e A Trégua.
Com
exceção do período como partisan e como prisioneiro, Levi
sempre viveu no apartamento do terceiro andar da Corso Re Umberto, 75, onde ele
nasceu.
Na manhã
de 11 de abril de 1987, a concièrge foi à
porta de seu apartamento para entregar-lhe a correspondência. Ela desceu a
escada espiral e mal tinha se fechado em seu quartinho no térreo quando ouviu o
baque forte de um corpo contra o piso. Era Primo Levi. De acordo com a autópsia, o
esmagamento do crânio causou morte instantânea.
A
divulgação da notícia consternou os amigos e admiradores. Logo a
hipótese de um acidente (Levi se queixara de tontura ao seu médico nos dias
anteriores) foi desafiada pela hipótese de suicídio. Para alguns, ele teria
concluído a sua obra e só lhe restava a morte; para outros, a doença da mãe do
escritor, totalmente dependente do filho, se tornara desesperadora
à medida que ele envelhecia; para Elie Wiesel, outro grande expoente da
literatura do Holocausto, Primo Levi, como outros sobreviventes,
jamais teria superado a trauma do Lager e “morreu em Auschwitz, quarenta
anos depois”.
Para os que acreditam na hipótese do suicídio, a possibilidade de uma morte meramente acidental talvez pareça um anticlímax
metafísico, uma intromissão da contingência - bruta e banal - no sentido profundo que presidiria a vida dos homens notáveis numa coerência de romance.
Não sei
se Primo Levi caiu por acidente ou atirou-se do alto da escada, mas sei que ele
nunca acreditou em algum tecido inconsútil dos acontecimentos que lhes daria o sentido último. A contingência estava na origem da sua obra e constituía o horizonte de sua vida. Ele se tornou escritor por acaso e por acaso havia sobrevivido a Auschwitz.
2.
Sorte,
acaso, aleatoriedade e contingência são nomes para o estado incerto e
fragmentário de nosso conhecimento, que jamais poderá prescindir da palavra
“talvez”. O que fazemos é tatear no escuro e sondar o campo do possível e do
provável. Para isto existem as profilaxias da lucidez: a filosofia e a ciência.
O maior
inimigo da lucidez é a própria demanda de verdade que existe em cada um de nós.
Essa demanda premente e enraizada nos atira precipitadamente na direção de tudo
o que reluz como verdade. Corremos atrás de boatos, de opiniões, de ideologias
políticas e de crenças religiosas. Queremos o sentido oculto e a lógica
universal. Queremos a causalidade e intencionalidade do mundo. Queremos todas
as panaceias e engolimos todos placebos. Queremos todas divindades e rezamos
pelo deus ex machina das salvações derradeiras. Queremos a
verdade que nos libertará e seguimos devorando fake news.
As
profilaxias da lucidez, como a filosofia e a ciência, servem para converter
a nossa demanda por verdade no hábito de sermos verídicos. Elas nos tiram
da avidez e nos ensinam o rigor, ela domam a pressa da tolice e reforçam a
consciência de que a exatidão e a certeza nem sempre estão a nosso alcance. Todavia, se a filosofia e a ciência nos tornam mais exigentes, elas não oferecem cura alguma para a doença, a miséria, a violência, o descalabro e a desfaçatez. A angústia e o sofrimento estão aí. E nós nos limitamos a atirar migalhas de palavras e chumaços de ideias nas goelas do monstro.
3.
Em certo
momento, Primo Levi escreve:
“A
convicção de que a vida tem um objetivo está enraizada em cada fibra do homem;
é uma característica da substância humana. Os homens livres dão a esse objetivo
vários nomes, e muitos pensam e discutem quanto à sua natureza. Para nós, a
questão é mais simples.
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foto: obra de Jannis Kounellis, sem título, 1969, Fundação Serralves, Porto
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