Do nome e do propósito
Antes que me perguntem, o nome vem
de um conto de Machado de Assis. Não um dos melhores, mas um dos mais
típicos. Brotero, o protagonista, é um deputado. Chega tarde em casa e está tão
irritado que não consegue dormir. A pasta ministerial que ele cobiçava foi dada
a outrem, que teve o favorecimento de uma viúva ilustre, que Brotero também
cobiçava. Cheio de despeito, sem o ministério e sem a viúva, Brotero escreve
uma carta ao conselho de ministros anunciando sua renúncia ao mandato de
deputado. “Brotero releu a carta, dobrou-a, encapou-a, sobrescritou-a;
depois atirou-a a um lado para remetê-la no dia seguinte. O destino lançara os
dados. César transpunha o Rubicão, mas em sentido inverso. Que fique Roma com
os seus novos cônsules e patrícias ricas e volúveis! Ele volve à região dos
obscuros”.
Sem sono, Brotero resolveu ler as cartas antigas e relembrar, cheio de "volúpia do sofrimento", as suas ilusões perdidas. Como o amor que
teve por L., bela mulher que não suportou os ciúmes dele e o abandonou. Brotero
percorreu novamente todo o caminho que os aproximou e depois os separou, até
que topou com uma carta em que ele cogitava o suicídio. Ele pensou nos
comentários maledicentes de que seria alvo caso tivesse se matado e sentiu
alívio por ter mudado de ideia. “Brotero sentiu uma cousa indefinível;
chamemos-lhe o calafrio do ridículo evitado”.
Os papéis velhos voltaram para a gaveta. Brotero
compreendia bem as causas e efeitos que o levaram a pensar em suicídio, mas ele
queria recuperar o que havia sentido. “Brotero não queria julgar
através do raciocínio e sim da sensação”. Todavia, a
sensação estava tão morta quanto um nariz que tivesse sido amputado do
corpo. Brotero se consolou pensando que a crise que lhe doía agora viria a ser
uma sensação extinta como tantas outras. O dia vinha clareando. “Brotero
ergueu-se; pegou a carta que escrevera ao presidente do conselho, e chegou-a à
vela; mas recuou a tempo. ‘Não, disse ele consigo mesmo; juntemo-la aos outros
papeis velhos; inda há de ser um nariz cortado’.”
Passo a outra história. Há um quarto de século, José
Raimundo Maia, que estava para lançar nos Estados Unidos o seu livro sobre o ceticismo
de Machado de Assis, me contou, num saguão de hotel em Florianópolis, o quão
importante era a decisão final de Brotero. O protagonista havia superado a
perturbação em que se encontrava ao dar-se conta de que a sua carta de renúncia
não valia nem mais nem menos do que os papéis velhos que acabara de ler. Ao
fazer isso, ele se libertou dos riscos de uma decisão precipitada e encontrou a
tranquilidade (ver nota abaixo).
A despeito da minha admiração pelo José Raimundo,
sempre fui cético quanto ao happy end que ele vê em “Papéis
Velhos” e, sobretudo, sempre me pareceu que sua interpretação era demasiado
intelectualista e “passava batido”, como dizem meus alunos, pela patologia do deputado
Brotero. Uma patologia recorrente nos personagens machadianos: a indecisão e a
hesitação que decorrem de uma profunda incapacidade de agir. Vontades fracas
cujas decisões são apenas adiamentos, fugas e saltos para trás. Brotero é um
César às avessas, que está sempre atravessando o Rubicão no sentido inverso.
Ele escreve uma carta de renúncia como havia escrito uma carta de suicídio,
depois ele desiste da renúncia assim como havia desistido do suicídio. Onde
José Raimundo Maia vê um movimento final de tranquilidade, eu vejo apenas mais
uma retração, mais uma oscilação pendular, mais um titubeio de uma vontade
débil que, como toda vontade débil, vive entre rompantes de dominação
(possessivo demais no amor, demasiado confiante na política) e as dores agudas
do amor-próprio ferido.
Como acontece a todos os fracos e reativos, o tempo
se impõe a Brotero como algo opaco e adverso, que ora se personifica em badaladas dissonantes, que pesam como admoestações, ora se sublima em abstrações tão absolutas quanto vazias: “Nada faltava a essas cartas; lá estava
o infinito, o abismo, o eterno. Um dos eternos, escrito na dobra do papel, não
se chegava a ler, mas supunha-se. A frase era esta: ‘Um só minuto do teu amor,
e estou pronto a padecer um suplício et...’ Uma traça bifara o resto da
palavra; comeu o eterno e deixou o minuto”.
O passado é somente morte, ruína
e extinção: “Muitas das cartas estavam encardidas do tempo. Posto nem
todos os signatários houvessem morrido, o aspecto geral era de cemitério; onde
se pode inferir que, em certo sentido, estavam mortos e enterrados. E ele
começou a relê-las, uma a uma, as de dez páginas e os simples bilhetes,
mergulhando nesse mar morto de recordações apagadas”.
Impotência, despeito, inveja, ciúme, volúpia do
sofrimento, vãs esperanças, indecisão, renúncia, desistência da renúncia,
“calafrio do ridículo evitado”, ridículos que não foram evitados. Eis aí o
personagem, que certamente não é um herói que alcança a tranquilidade... Mas temos o direito de zombar dele? Quem nos garante que essa
condição mesquinha, provisória e incerta não seja exatamente a minha e a sua,
leitor? Qual fé ou filosofia pode nos colocar ao abrigo dos miasmas da nossa
fraqueza? Que salvação ou terapia pode nos redimir?
Há um quarto de século, naquele saguão de hotel em Florianópolis, eu silenciei meu desacordo com uma visão demasiado otimista do ceticismo, que apostava nas virtudes terapêuticas da suspensão de juízo. Hoje eu posso abrir minha gaveta de papéis velhos para expor aos curiosos esses e outros exemplos do vasto arquivo de esperanças capengas e redentores gorados. Alguns merecem uma consideração caridosa, outros, um sorriso compassivo.
Leitores, sejam bem-vindos ao meu blog. Se quiserem
lucidez, façam o favor de me acompanharem, mas não contem comigo para serem
felizes. Minhas esperanças são reticentes. Minhas dúvidas não terminam em
ataraxia. Meu ceticismo é uma chaga, que eu desejo contagiosa.
NOTA
Brotero's
awareness of time allows him to avoid the negative consequences resulting from
thoughtless and hasty actions caused by passions. Besides, his awareness also
helps him to mitigate these very passions. His attitude is typically
Pyrrhonian. Brotero compares the value of the old with that of the new letter
and realizes that they are equipollent. One is no more valuable than another
(Sextus, Pyrrhonian Hypotyposes 1, 190). Both are equally meaningless from the
standpoint of ultimate human finitude. Equipollence makes Brotero suspend
judgement (epoché) with respect to the external (intrinsic) value of the
matters addressed in the letters. During the whole night, Brotero
is undecided and in mental confusion. With the discovery of the equipollence of
the letters, he reaches the stage where "[the skepticis] found that
quietude, as if by chance, followed upon their suspense, even as a shadow
follows its substance" (Pyrrhonan Hypotyposes 1, 29). Machado here sheds
light on the axiological foundation of the Pyrrhonian life and on the subtle
passage experienced by the Pyrrhonian from suspension of judgement (epoché) to
tranquility (ataraxia). (...) Brotero finds tranquility because he mitigates -
detaches himself from - the value of being a minister of state. (José Raimundo Maia, Machado de Assis: the Brazilian Pyrrhonian,
Purdue University Press, 1994, pp 64-65)
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